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Restrições publicitárias afetam mercado

O primeiro anúncio de uma cerveja no Brasil, produzido pela Antarctica no jornal A Província de S. Paulo (atual O Estado de S. Paulo), remonta a março de 1889, época em que o país ainda era uma monarquia. Desde então, o produto ganhou enorme importância na propaganda brasileira. No ano passado, as quatro grandes cervejarias do país investiram mais de meio bilhão de reais em propaganda, sendo que 89% desse total foi destinado à publicidade em televisão -- tanto aberta como por assinatura.

Uma resolução em fase final de tramitação na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) promete mudar radicalmente esse cenário. A medida, que até o fechamento desta edição estava em análise na procuradoria jurídica do órgão, prevê duras restrições à propaganda de cerveja na televisão. Caso seja aprovada, a resolução proibirá a veiculação de anúncios de cerveja no horário considerado de maior audiência do público infanto-juvenil, entre as 8 e as 20 horas. Atualmente, a publicidade de cerveja é liberada em todos os horários. Com essa restrição, a Anvisa atingirá um ponto nevrálgico do marketing das grandes cervejarias: o patrocínio de jogos de futebol, exibidos tanto em horários noturnos como em diurnos nos fins de semana. As cotas de futebol das emissoras de TV -- que também prevêem inserções nos intervalos de telejornais e programas esportivos -- estão entre os produtos mais valorizados do mercado publicitário. A Ambev, por exemplo, pagou 97,4 milhões de reais por sua cota nas transmissões de futebol da TV Globo, na qual anuncia várias de suas marcas de cerveja.

O argumento da Anvisa para limitar os anúncios de cerveja na TV é que esse tipo de publicidade funcionaria como um estímulo para que crianças e adolescentes consumam bebidas alcoólicas. A agência acredita que as campanhas induzem os jovens ao consumo porque associam o produto a imagens de descontração, prazer e sensualidade. "O governo entende que a Anvisa tem respaldo legal para tomar essa decisão e nós vamos tomar", disse recentemente o ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Desde novembro de 2005, a agência tem discutido o texto que vai compilar novas normas para esse mercado. Com a perspectiva de que essas medidas entrem em vigor, cresceu o volume de protestos e as ameaças de contestações judiciais. Uma das principais críticas é que a resolução é inconstitucional.

"Esse tipo de proibição é uma atribuição do Congresso Nacional", diz Gilberto Leifert, presidente do Conselho de Auto-Re gulamentação Publicitária (Conar). Segundo um levantamento feito pela entidade, tramitam no Legislativo quase 200 projetos de lei que têm como objetivo a restrição de publicidade de vários produtos, dos quais 66 são relativos a bebidas alcoólicas. Diante das ameaças de contestações judiciais, a Anvisa decidiu enviar o texto da resolução para a análise de sua procuradoria jurídica no início deste mês.

Há sete anos, com objetivos semelhantes aos da Anvisa, o governo federal proibiu a publicidade de cigarros no Brasil, por meio de uma alteração aprovada no Congresso da legislação em vigor na época. Ao vetar as propagandas de fumo, o Brasil seguiu uma tendência mundial. Na União Européia, desde a década de 90, não são permitidos anúncios de cigarro na televisão -- medida que foi ampliada no ano passado com a proibição de publicidade em mídia impressa, rádio e internet. Nos Estados Unidos, a veiculação de anúncios de cigarro na TV está proibida desde 1971, mas a publicidade é liberada em outros meios de comunicação, sempre com as advertências sobre os riscos do consumo. No entanto, alguns veículos, como as principais revistas do país (Time, Newsweek, People e Sports Illustrated), firmaram recentemente um acordo espontâneo para não publicar anúncios de cigarro em edições que são distribuídas a bibliotecas e escolas.

As restrições às propagandas de cigarro são hoje parte de uma ampla estratégia de combate ao fumo recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Nos últimos anos, o consumo de cigarros entre os jovens brasileiros de fato foi reduzido. A dúvida, porém, é sobre o real peso do fim da publicidade nesse processo. Afinal, o fumo é alvo de ataques ferozes -- que se manifestam de várias formas, desde proibições do cigarro em ambientes sociais e de trabalho até campanhas de saúde pública -- há pelo menos uma década. Um estudo recente aponta que o percentual de fumantes entre a população com idade acima de 18 anos caiu de 35% em 1989 para 22% em 2003. Entre a população mais jovem, de 18 a 24 anos, o índice de fumantes passou de 29% para 17%. É um decréscimo significativo. Por outro lado, o número absoluto de consumidores brasileiros de cigarros manteve-se praticamente estável -- e as vendas no mercado em volume de unidades até cresceram um pouco no período de vigência da proibição (veja quadro na pág. 70). "O importante é que os dados apontam que o percentual de jovens fumantes tem diminuído", diz Tânia Cavalcante, coordenadora do Programa Nacional de Controle do Tabagismo.

Diante das restrições aos anúncios, as fabricantes de cigarros foram obrigadas a reinventar a forma de vender seus produtos -- e aprenderam na prática que a vida sem publicidade funciona dentro de uma lógica completamente diversa. Antes da proibição, a indústria do fumo estava entre os maiores anunciantes do país. Somente uma das campanhas da Souza Cruz, criada para a marca Hollywood, envolveu investimentos de 5,5 milhões de dólares dois anos antes da proibição. Com o fim da propaganda, tanto a Souza Cruz como a Philip Morris, as duas maiores fabricantes do país, reduziram seu portfólio de produtos às marcas líderes que já tinham boa penetração entre os fumantes. Com base nelas, lançaram novas versões aromatizadas e com embalagens diferenciadas, numa tentativa de agregar maior valor ao produto -- o Hollywood hoje tem oito versões, e o Free, sete.

Os orçamentos milionários do passado foram pulverizados por setores variados das empresas, como as áreas de logística e produção. Ao marketing coube a tarefa de transformar-se numa espécie de usina de informações que permitem às empresas saber com exatidão o perfil de quem compra seus produtos e detectar com precisão qualquer mudança de mercado, por mais ínfima que seja. Por fim, mas não menos importante, as fabricantes de cigarros aumentaram drasticamente sua presença em pontos-de-venda -- a Souza Cruz tem cerca de 350 000 deles espalhados pelo país, número cerca de 40% maior que o da Philip Morris.

Em um primeiro momento, o estrangulamento provocado pela falta de publicidade afetou diretamente os resultados das empresas. Entre 2000 e 2003, o faturamento da Souza Cruz caiu de 8,1 bilhões de reais para 6,5 bilhões. "Levamos dois anos para conseguir nos adaptar à nova realidade", diz Christopher Montenegro, ex-executivo da Souza Cruz e atual sócio-diretor da agência carioca POP Marketing, especializada em comunicação nos pontos-de-venda.

Mas quem apostava que esse cenário seria definitivo errou. Hoje, o Brasil mantém-se nas posições de segundo maior produtor de fumo do mundo e de maior exportador. Desde 2000, a produção de cigarros cresceu de 4,8 bilhões de maços para 5,6 bilhões, dos quais 99% são consumidos no mercado interno. No caso da Souza Cruz, a hemorragia financeira foi estancada em 2004, quando a empresa apresentou crescimento de 3% em relação ao ano anterior. Em 2006, a Souza Cruz conseguiu voltar aos patamares de faturamento pré-proibição, com vendas de 8,6 bilhões de reais, e conquistou 1% a mais de participação de mercado, basicamente à custa dos concorrentes. Dona de seis das dez marcas de cigarro mais vendidas do Brasil, a companhia se beneficiou de sua estrutura colossal para consolidar-se como a líder absoluta e manter os 75% de participação que tinha antes da proibição.

Essa, por sinal, é uma tendência. Em situações de restrição de propaganda, o líder costuma manter a dianteira. As empresas que desfrutam de uma boa situação no mercado não sobem, mas também não caem. A Philip Morris, por exemplo, manteve os 14% de participação que tinha à época da proibição da publicidade de cigarro. O problema maior é enfrentado por concorrentes que desejam entrar na disputa. Sem poder anunciar, torna-se muito difícil para uma companhia novata romper o domínio das congêneres já estabelecidas no mercado ou melhorar de posição. Transposto para o mundo das cervejas, esse cenário de proibição, em tese, beneficiaria a Ambev, a líder, e seria muito bom para uma empresa como a Petrópolis, média e sem maiores ambições, mas um desastre para a mexicana Femsa, que procura expandir suas operações no Brasil. "No fundo, a proibição da propaganda prejudica a livre concorrência", diz Leifert, do Conar.

Fazer a relação direta entre redução da propaganda e queda do consumo de um produto como a cerveja, no entanto, é enveredar por terreno pantanoso. Na Inglaterra, o sexto país do mundo em consumo per capita de cerveja, o investimento em publicidade cresceu 500% nos últimos 20 anos. No mesmo período, o consumo caiu quase 20%. Lá, assim como nos Estados Unidos, o controle de eventuais excessos é feito por meio da auto-regulamentação. Na Venezuela, onde a publicidade do produto é proibida, o mercado não pára de crescer. Em pouco mais de uma década, houve aumento de 66%. Ou seja: até agora, no mundo, não há uma relação direta estabelecida entre proibição de propaganda de cerveja e queda no consumo.

Mesmo no Brasil, os dados mostram que investimento em publicidade e aumento no consumo de cerveja não andam, necessariamente, lado a lado. Segundo levantamento do instituto de pesquisa Ibope Monitor, o consumo de cerveja per capita no Brasil aumentou 5% entre 2001 e 2006, de 49 para 52 litros por pessoa por ano. Nesse mesmo período, o investimento em publicidade mais que triplicou -- passou de 155 milhões de reais para 568 milhões. "É um sinal claro de que a publicidade é muito mais utilizada para o posicionamento de marca em relação às concorrentes do que no aliciamento de novos consumidores", diz Fabio Fernandes, da agência F/Nazca, que tem a conta publicitária da Skol.


Fonte: Por Daniel Hessel Teich, in portalexame.abril.com.br

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