Pular para o conteúdo principal

A reinvenção do criativo na agência de propaganda

Marcello Serpa nasceu e cresceu no Rio de Janeiro, estudou artes gráficas e visuais na Alemanha (onde morou por sete anos, trabalhando na GGK e R.G. Wiesmeir), mas viveu seu melhor momento como diretor de arte e de criação em São Paulo, para onde mudou após seu retorno ao Brasil e passagem pela DPZ Rio. Na capital paulista, primeiro como colaborador da DPZ e da DM9DDB, depois (desde 1993) como sócio da AlmapBBDO, ele se transformou em um dos principais astros de uma geração que viveu a consolidação do poder dos criativos à frente das agências — seguindo a trilha aberta a duras penas por um grupo de vanguarda que transformou radicalmente a atividade. Juntas, essas duas gerações construíram a maioridade da propaganda brasileira.

Serpa herdou a história de sucesso da pioneira e uma das principais escolas da criação nacional, reciclando totalmente, ao lado de seu sócio José Luiz Madeira, essa agência que, novamente, se transformou em símbolo maior de qualidade criativa da propaganda e tem sido a mais premiada do País na última década. Entretanto, o extraordinário sucesso do profissional e empresário, com seus 43 anos, não lhe impede de sentir para onde sopram os ventos da realidade e de compreender que, quando um ciclo se fecha, outro tem início, levando ele e todos seus colegas criativos a um processo de reinvenção de seu ofício.

Com a autoridade de quem está no auge de sua vida profissional, Serpa conta em seu currículo com superdestaques, como ser o diretor de arte mais premiado do Brasil, ter sido o criador do primeiro Grand Prix da América Latina no Festival de Cannes (Press & Outdoor, em 1993), ter conquistado as duas únicas medalhas de ouro da América Latina no Art Directors Club of New York, ter ganho dois Grand Prix no The New York Festival e ter obtido quatro vezes o Prêmio Abril de Propaganda. Foi ele também o primeiro profissional latino a presidir o júri de Cannes, se sobressaindo como o presidente mais jovem da história do evento. Presidiu, igualmente, o júri de TV e Rádio do Clio Awards, o júri do London Festival e os júris de “non-English language” e de mídia impressa do rigoroso D&AD inglês.

Com todas essas credenciais, não há dúvida de que seus conceitos, expressos na entrevista a seguir, realmente são ouro puro. Que Serpa, generosamente, divide com nossos leitores.

ABOUT – No último Festival de Cannes, muitos resultados de prêmios importantes foram bem diferentes do que acontecia habitualmente. Por quê? Mudou Cannes ou mudou a propaganda?
MARCELO SERPA – Mudou mais Cannes do que a propaganda. O perfil do festival veio se alterando radicalmente desde que os clientes passaram a participar em maior número do evento. Este foi o ponto de virada e hoje com certeza Cannes deixou de ser um festival de criação para ser um festival de propaganda.

ABOUT – Propaganda...
SERPA – Sim, considerando que essa palavra-conceito abrange todo o conjunto da comunicação de marketing.

ABOUT – Essa maior presença de clientes é positiva?
SERPA – Ela foi benéfica para a propaganda como um todo e, principalmente, para os próprios clientes. A participação em Cannes leva a um maior nível crítico e de exigência pela criatividade por parte dos clientes. Como decorrência dessa presença, Cannes abriu espaço no seu lado “festival” para o crescimento do lado “profissional”. Estes são os aspectos positivos...

ABOUT – Tem algum aspecto negativo?
SERPA – Cannes passou a ter um clima mais tenso e mais nervoso. Ficou mais chato e as disputas passaram a incluir um maior viés negocial. O Grand Prix de Films deste ano é um caso típico, pois o trabalho de Dove tem mais o jeito de ser um vencedor dos Effies do que de Cannes...

ABOUT – Dá para corrigir?
SERPA – Será que é o caso de corrigir, já que isso é um reflexo da própria evolução da atividade? De qualquer modo, é importante evitar que o festival se transforme em uma disputa mais pelos negócios do que pela criatividade, pois isso poderia até eliminar a principal razão pela qual Cannes deu certo.

ABOUT – A quem cabe a principal responsabilidade por isso? Aos administradores do festival?
SERPA – Mais do que a eles, aos presidentes dos júris, pois são estes que dão o tom dos julgamentos e podem evitar que o bom caminho seja abandonado. Bob Scarpelli, que presidiu o júri de Films deste ano, por exemplo, fez um trabalho muito bom e deveria servir de padrão para o comportamento de futuros presidentes.

ABOUT – Não existe um excesso de coisas para ver e das quais participar?
SERPA – Existe, mas não sei direito como selecionar. Poderia ser feita uma pré-seleção das peças inscritas, para se ter algo como um long list anteriormente. Os seminários poderiam ser mais seletivos em termos de assuntos e apresentadores. Não é fácil, reconheço, e isso até poderia reduzir essa riqueza de opções de Cannes. Mas, por outro lado, o esquema atual é over e, para nós, os participantes, fica uma sensação incômoda de que perdemos alguma coisa importante.

ABOUT – Mas essa quase orgia de alternativas tem seu fascínio, não tem?
SERPA – De fato, é fascinante. Mas tudo deve ter seu balanço e meu medo é que esse lado excitante de Cannes possa sacrificar o aspecto fundamental do festival que é o de apresentar um painel muito preciso do que está mudando e evoluindo na propaganda. E insisto na visão ampla do termo “propaganda”, pois acho uma tremenda bobagem essa briga entre categorias e plataformas. Não se trata de a internet, de a promoção, de o marketing direto ou de o cartaz tentarem mostrar que são melhores que os filmes de TV ou os anúncios — e nem destes provarem sua superioridade. Trata-se da evolução da propaganda, de fazer comunicação mais eficaz para as marcas e empresas.

ABOUT – Mudando de foco, mas não de assunto: a função da criação se alterou diante das novas realidades da propaganda? Qual seria o novo papel da criação, o novo formato da área e o novo perfil do criativo?
SERPA – Esta é a grande mudança: o criativo precisa entender que a idéia não tem dono. Ela tanto pode ser gerada na criação como no planejamento, no atendimento, na mídia, na pesquisa, no cliente ou, até mesmo, pelo consumidor. A criação não tem mais — se é que um dia teve — o monopólio da idéia. A visão de que a criação tem as grandes idéias e todas as outras áreas devem apenas “suportar” sua genialidade não tem mais nem presente nem futuro. O profissional de criação precisa ter a humildade de reconhecer essa realidade e estar capacitado para trabalhar a partir da boa idéia, da idéia pertinente, explorando todos os seus limites e formatando a peça de comunicação — independentemente do suporte e da mídia — da melhor maneira. Em propaganda, a boa idéia não é mais um título, uma imagem ou um roteiro genial. A boa idéia é algo bem mais complexo, que tenha o potencial de ser explorado de forma relevante e consistente em muitas peças e pontos de contato da marca com os consumidores. Essa é a função maior da criação e da própria agência, por meio do conjunto de seus colaboradores. Em Cannes, por exemplo, vi idéias geniais nas áreas de Titanium, Media e Direct. Idéias que não tinham os limites de um anúncio, cartaz ou comercial.

ABOUT – Tem muito criativo perdido por aí?
SERPA – Aqui na AlmapBBDO não tem nenhum... (risos). Por aí, acho que tem bastante. São criativos que estão ficando sem chão em decorrência de sua impotência diante da evolução que lhes retirou o status de deuses e os levou para o mesmo patamar de todos os demais profissionais da área. Tem criativo que não aceita isso e fica resmungando que não o deixam trabalhar...

ABOUT – Qual é a melhor dupla do criativo? O planejador?
SERPA – Geralmente é o planejador. No meu caso, quando decidi aceitar o desafio de transformar a AlmapBBDO, fiz uma bela dupla, por absoluta afinidade, com o José Luiz Madeira, meu sócio e nosso diretor de planejamento. Mas também fiz e faço dupla com mídias, pessoal da internet e, até, criativos. E esse é o caminho: o criador deve fazer dupla com todo mundo que possa contribuir para gerar e desenvolver a idéia, inclusive com o cliente e o próprio consumidor.

ABOUT – Para fazer essas duplas, o criativo tem de entender de todas as áreas?
SERPA – Ele tem de ter noção de tudo, mas não pode ter a ilusão de acreditar que pode fazer qualquer coisa de forma tão brilhante que prescinda de seu dupla.

ABOUT – Isso vale para inspirar, gerar ou desenvolver a idéia?
SERPA – Vale para tudo. A participação de outros profissionais na fase de inspiração e de desenvolvimento é até mais comum. O problema, para muitos criativos, está em aceitar um dupla não-criativo na etapa de gerar a idéia, que sempre é uma coisa meio abstrata em sua origem...

ABOUT – Abstrata?
SERPA – Sim, pois a idéia sempre é um conceito que poderá assumir diversas formas no seu desenvolvimento.

ABOUT – É preciso ser realista?
SERPA – Não necessariamente. O importante é que a idéia seja relevante e capaz de aderir à marca e cativar os consumidores visados. Ela precisa tangibilizar uma diferença emocional para as marcas e gerar carisma para elas. A questão-chave é que os produtos e os serviços estão reduzindo suas diferenças objetivas e a propaganda perde, cada vez mais, a capacidade de argumentação com bases racionais, que foi o fundamento de boa parte da melhor comunicação feita nas últimas décadas.

ABOUT – É uma mudança substantiva, então?
SERPA – É quase radical, por isso não é simples e não pode ser cosmética. Não é apenas uma questão superficial. É um jogo diferente. Que envolve uma elevada dose de emoção, como já disse, e um componente de entretenimento que pode ter grande influência no sucesso da comunicação.

ABOUT – É esse o jogo que a criação tem que aprender a jogar?
SERPA – Sim, razão pela qual o criativo tem de se reinventar. É um jogo no qual é muito mais difícil se chegar às boas idéias. E a melhor não é necessariamente aquela daqueles que são pagos — às vezes, muito bem — justamente para ter idéias.

ABOUT – A nova geração de criativos está preparada para isso?
SERPA – Eu observo que a novíssima geração já chega jogando desse jeito, que tem a ver com a cultura contemporânea. O problema está em algumas gerações anteriores, inclusive nas mais recentes. E também há uma forte influência de como a agência trabalha.

ABOUT – Em que sentido?
SERPA – Para jogar esse novo jogo, não pode haver um monte de paredes, departamentos, hierarquias. É preciso horizontalizar tudo isso para permitir um trabalho realmente de equipe, o melhor aproveitamento dos talentos e experiências individuais, um fluxo de trabalho sem interrupções e a existência de uma postura ao mesmo tempo sem censura na hora de criar e bastante crítica no momento de selecionar.

ABOUT – Em termos práticos, como essa realidade funciona?
SERPA – Para começar, reúne-se um amplo grupo de profissionais ligados à marca na etapa de pensar caminhos, definir linhas de comunicação e gerar idéias. A seguir, separam-se as tarefas para cada área e especialista desenvolver sua parte. Na seqüência, todos devem voltar a se reunir para avaliar, selecionar e incrementar as propostas. Em seguida, volta-se a trabalhar em separado as partes necessárias. Depois, é preciso fazer um novo encontro geral para amarrar tudo. Esse processo só deve parar quando todos tiverem certeza de que se têm uma proposta e uma campanha vencedora nas mãos.

ABOUT – Como é possível viabilizar economicamente essa forma de trabalho?
SERPA – Não é o caso de fazer tudo isso para cada anúncio ou cartaz de PDV, é claro, mas tem de ser feito desse modo quando da criação das novas campanhas de cada marca. É o preço que é preciso pagar para se ter propaganda que realmente funcione e faça a diferença na vida da marca.

ABOUT – A propaganda vem sendo atacada de forma crescente por todos os lados. O que fazer em defesa da atividade e qual o papel do criativo nessa luta?
SERPA – Eu acho que a melhor forma de defender a propaganda é mostrar o que ela é capaz de fazer para a vida das empresas e, por conseqüência, da economia e da sociedade. Imagino fazer coisas como uma versão empresarial do Extreme Makeover. Só que em vez de reconstruir a casa de uma família, um grupo de profissionais pegaria uma empresa à beira da falência e faria uma bela repaginada em seu posicionamento, design, embalagens, propaganda etc. Depois, é só acompanhar e documentar a virada do negócio, mostrando empregados felizes, fornecedores faturando, impostos sendo recolhidos, consumidores bem atendidos e proprietários vencedores.

ABOUT – E o que os criadores devem fazer?
SERPA – Além de ter idéias como essa? Talvez encontrar maneiras de fazer seu trabalho sem levar a propaganda a ser um alvo ainda mais fácil do que já é. Mas isso é bastante complexo, pois pode fazer da comunicação uma coisa chata e sem brilho. Esse patrulhamento excessivo sobre a propaganda é o reflexo de uma doença da alma brasileira, que sempre foi muito alegre e irreverente, porém está caminhando para baixo, para uma amargura que não tem a ver com a nossa cultura e jeito de ser. E que pode comprometer nossa tão decantada esperança.

ABOUT – Provavelmente isso acontece porque a propaganda acaba sendo o bode expiatório de muitos problemas que não têm nada a ver com a comunicação das marcas...
SERPA – Pode ser, mas isso realmente é péssimo. A propaganda tem a obrigação de puxar tudo para cima, de ser otimista, alegre e não-convencional. Se formos cerceados e obrigados a caminhar na direção oposta, as primeiras prejudicadas serão a propaganda e as marcas, mas os maiores prejuízos ficarão com os consumidores e com o País.


Fonte: Por Rafael Sampaio, in www.portaldapropaganda.com

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

H2OH! - um produto desacreditado que virou sucesso

O executivo carioca Carlos Ricardo, diretor de marketing da divisão Elma Chips da Pepsico, a gigante americana do setor de alimentos e bebidas, é hoje visto como uma estrela em ascensão no mundo do marketing. Ele é o principal responsável pela criação e pelo lançamento de um produto que movimentou, de forma surpreendente, o mercado de bebidas em 11 países. A princípio, pouca gente fora da Pepsi e da Ambev, empresas responsáveis por sua produção, colocava fé na H2OH!, bebida que fica a meio caminho entre a água com sabor e o refrigerante diet. Mas em apenas um ano a H2OH! conquistou 25% do mercado brasileiro de bebidas sem açúcar, deixando para trás marcas tradicionais, como Coca-Cola Light e Guaraná Antarctica Diet. Além dos números de vendas, a H2OH! praticamente deu origem a uma nova categoria de produto, na qual tem concorrentes como a Aquarius Fresh, da Coca-Cola, e que já é maior do que segmentos consagrados, como os de leites com sabores, bebidas à base de soja, chás gelados e su

Doze passos para deixar de ser o “bode expiatório” na sua empresa

Você já viu alguma vez um colega de trabalho ser culpado, exposto ou demitido por erros que não foi ele que cometeu, e sim seu chefe ou outro colega? Quais foram os efeitos neste indivíduo e nos seus colegas? Como isso foi absorvido por eles? No meu trabalho como coach, tenho encontrado mais e mais casos de “bodes expiatórios corporativos”, que a Scapegoat Society, uma ONG britânica cujo objetivo é aumentar a consciência sobre esta questão no ambiente de trabalho, define como uma rotina social hostil ou calúnia psicológica, através da qual as pessoas passam a culpa ou responsabilidade adiante, para um alvo ou grupo. Os efeitos são extremamente danosos, com conseqüências de longo-prazo para a vítima. Recentemente, dei orientação executiva a um gerente sênior que nunca mais se recuperou por ter sido um dia bode expiatório. John, 39 anos, trabalhou para uma empresa quando tinha algo em torno de 20 anos de idade e tudo ia bem até que ele foi usado como bode expiatório por um novo chefe. De

Conselho Federal de Marketing?

A falta de regulamentação da profissão de marketing está gerando um verdadeiro furdunço na Bahia. O consultor de marketing André Saback diz estar sendo perseguido por membros do Conselho Regional de Administração da Bahia (CRA/BA) por liderar uma associação – com nome de Conselho Federal de Marketing e que ainda não está registrada – cujo objetivo, segundo ele, é regulamentar a profissão. O CRA responde dizendo que Saback está praticando estelionato e que as medidas tomadas visam a defender os profissionais de administração. Enquanto André Saback, formado em marketing pela FIB - Centro Universitário da Bahia -, diz militar pela regulamentação da profissão, o Presidente do CRA/BA, Roberto Ibrahim Uehbe, afirma que o profissional criou uma associação clandestina, está emitindo carteirinhas, cobrando taxas e que foi cobrado pelo Conselho Federal de Administração por medidas que passam até por processar Saback, que diz ter recebido dois telefonemas anônimos na última semana em tom de ameaç