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Propaganda e liberdade

Não existem capitalismo e economia de mercado sem propaganda. E, por enquanto, não há alternativa visível a esse sistema vencedor, capaz de manter em movimento eficiente a engrenagem da economia global. A função principal da propaganda é transformar em novos objetos de desejo os produtos e serviços criados pela inovação tecnológica, motor central do desenvolvimento. E fazer do cidadão um contínuo consumidor, cada vez menos satisfeito com o que já tem e encontrando no ato de compra satisfação ilusória de desejos ou alívio temporário de frustrações. Em geral, a propaganda se destina a fazer o indivíduo consumir mais algo de que não precisa, ou trocar a marca daquilo que já consome. As razões são sistêmicas. A primeira tem que ver com a necessidade intrínseca ao capitalismo de estar em permanente expansão, no que ele depende da voracidade do consumidor. A segunda objetiva manter viva e selvagem a concorrência, fundamental ao estímulo da eficiência e do controle dos preços. Para conseguir tais objetivos vale tudo.

A sofisticação da propaganda é intensa. Ela recorre a instrumentos sofisticados como técnicas subliminares, que criam desejos e necessidades utilizando, entre outros, processos de identificação e transferência. Dado o papel que nossa sociedade atribui à propaganda, nada a objetar; a não ser os limites que devem ser estabelecidos para que esse imenso poder não colida diretamente com o interesse público ao induzir ao consumo inadequado ou perigoso pessoas que têm poucas condições de se defender desse seu poder. A discussão central remete à questão da liberdade. Os defensores ferrenhos da propaganda sem restrições gostam de associá-la à liberdade de expressão. Aqueles que aprenderam a cultivar essa liberdade como valor maior da democracia, em especial os que sofreram censura e tortura por expressarem pontos de vista diferentes dos autoritários donos provisórios do poder, têm o direito de não gostar dessa generalização.

Vez por outra, a mídia escrita se envolve em armadilhas. No último Dia Internacional da Imprensa, anúncio de página inteira de sua entidade de classe mostrava manifestantes lacrados em sala fechada, e alertava: "Se não fosse a liberdade de expressão, alguns protestos só existiriam entre quatro paredes. Liberdade de expressão, um direito do cidadão." Pura verdade. Mas no canto direito da página, quase imperceptível, pousava uma "impressão digital": a logomarca de uma grande multinacional de cigarros - com propaganda restrita na maioria dos países do mundo - com a inscrição: "Empresa parceira." Jornais, revistas, rádios, TVs e internet precisam tanto da propaganda, e vivem tão abarrotados dela, que acabam aceitando embalar edições com capas "falsas", fazer os anúncios lançarem seus braços sobre o noticiário de forma a parecer torná-lo secundário e contaminar a programação com merchandising. Esse deve ser o preço a pagar pela liberdade de expressão?

Uma sociedade que pretende a primazia do cidadão e sua mínima liberdade precisa, e pode, ter regras e limites para a propaganda sem afetar seu papel fundamental na lógica do sistema econômico. Um surpreendente exemplo foi a até aqui muito eficaz ação da Prefeitura de São Paulo na limitação da poluição visual insuportável na cidade. Esperemos que novos interesses não revertam essa rara política pública de alta qualidade cívica. Obviamente, não houve redução do consumo de nenhum dos produtos que abarrotavam com sua poluição visual o espaço paulistano. A indústria da propaganda é suficientemente inteligente e competente para encontrar outras soluções. Deixada à solta, ela tende a ocupar vorazmente todo o espaço público, entrar em rendimento decrescente e saturar o consumidor. Uma tese interessante seria imaginar uma regra que levasse a mídia impressa e eletrônica a uma relação máxima razoável entre o espaço de propaganda e o de matérias ou programação. O preço do espaço subiria igualmente para todos os anunciantes, mas a eficácia de sua veiculação se elevaria na mesma proporção, pelo melhor impacto relativo no consumidor. E a sociedade ganharia com jornais, revistas, TVs e internet mais "limpos", enobrecendo os veículos e aumentando o interesse do cidadão.

Discussão semelhante surge agora na questão das restrições à propaganda da cerveja. Um pesado lobby se levanta em jogo bruto para acusar essa medida de "restrição à liberdade" e aparecem enormes anúncios com o refrão: "Querem proibir a publicidade de cerveja no Brasil. É o mesmo que proibir a fabricação de abridores de garrafa no Brasil." Ora, vejam. Obviamente, a propaganda de cerveja visa o aumento de seu consumo e a guerra entre as marcas. Mas em meio ao texto, em forma de poesia, surge toda uma manipulação a serviço de tese ruim: "Por isso, proibir a publicidade de cervejas não vai mudar em nada esse quadro (da violência, do vício de menores, etc.), a não ser tirar de você o direito de gostar ou não gostar desta ou daquela publicidade. De se informar e de formar a sua opinião. Um direito tão sagrado quanto o que você tem de comprar ou não um abridor de garrafas." Esses argumentos, contraditórios e inconsistentes, não convencem qualquer pessoa responsável de que é saudável submeter crianças e jovens a apelos altamente sedutores e eróticos associados a várias dessas propagandas, induzindo-os precocemente ao interesse pelo consumo que pode levar ao vício.

A sociedade, por meio de suas instituições, tem o dever de proteger a liberdade colocando limites razoáveis para a propaganda, esse instrumento de enorme poder que usa até espaços públicos para objetivos privados que às vezes pretende ocultar.


Fonte: Por Gilberto Dupas - coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional (IRI-USP) e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), in www.estadao.com.br

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