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Será que o mundo precisa de líderes bonzinhos?

O conceito de liderança é cheio de sutilezas. Cada de um de nós interpreta o significado do termo de forma diferente e entende de diferentes maneiras o que vem a ser um “líder de verdade”. A pesquisa acadêmica em torno do assunto também demonstra igual heterogeneidade. O líder é estudado sob várias dimensões distintas (características, comportamento, histórico pessoal etc.), porém esse esforço tem produzido relativamente poucas descobertas capazes de resistir ao teste do tempo e suficientemente fortes para dar conta de situações de todos os tipos em diferentes culturas nacionais e empresariais.

Nesse contexto, uma avaliação inteligente das vantagens, desvantagens e perspectivas futuras do líder de “ego inflado” exigiria, em primeiro lugar, uma definição precisa do termo. O que queremos dizer com líder de ego inflado? Qual seria o oposto disso? Existe uma literatura que faz o contraste entre líderes de “ego inflado” e líderes humildes, dóceis, e que são conhecidos popularmente como “gente boa”. Mas será que o mundo precisa, de fato, de mais líderes bonzinhos?

Sinto-me tentado a dizer que “sim” e que “não”. Num cenário em que nada mudasse, a maioria de nós gostaria de trabalhar para líderes que delegassem poder de decisão a seus funcionários, acolhessem de bom grado e até mesmo pedissem a opinião de seus subordinados, que se importassem com eles como empregados e indivíduos e os ajudassem a crescer. Um toque de humildade, uma atitude positiva em relação à vida e às pessoas e um excelente senso de humor também seriam bem-vindos.

Na prática, porém, não sei de evidência alguma que aponte para o fato de que esses líderes maravilhosos sejam sempre mais eficazes, ou até mesmo mais admirados por seus funcionários. Na verdade, não é difícil imaginar que essa “pessoa incrível” tenha também um problema patológico que não lhe permita monitorar as prioridades como seria de esperar, ou que tenha dificuldade de ouvir o que têm a dizer várias pessoas, de tal modo que não saiba que decisão tomar. Imagine ainda esse líder simpático desprovido de bom senso para os negócios, sem conhecimento da indústria ou desacreditado por seu superior e, portanto, incapaz de dar a seus subordinados o respaldo e os recursos de que precisam. Mesmo assim, você ainda gostaria que esse líder simpático fosse seu chefe?

Os líderes, sobretudo os mais experientes, desempenham inúmeros papéis e têm múltiplas responsabilidades. Em primeiro lugar, têm responsabilidades no tocante à definição da estratégia: é preciso que saibam interpretar o cenário competitivo em constante evolução (levando em conta também a entrada em cena de possíveis novos concorrentes), que se mantenham atualizados em relação às mudanças tecnológicas e às expectativas dos clientes, que compreendam o negócio e a dinâmica da indústria e cultivem uma perspectiva estratégica de tudo o que se passa, inclusive de alianças, de ampliações ou de desinvestimentos que possam interessar.

Em segundo lugar, o líder é o arquiteto da organização, é ele que projeta e utiliza a estrutura da empresa, seus sistemas, processos e tecnologia para traduzir a estratégia em ação e dar forma à cultura da empresa a longo do tempo.

Por fim, e igualmente importante, o líder tem de mobilizar a energia de públicos diversos propondo, com freqüência, diferentes expectativas e novas maneiras de ver as coisas: em sentido descendente (subordinados diretos e empresa como um todo), ascendente (chefia imediata de todos os níveis até a diretoria, no caso de CEOs), e no plano externo (acionistas, analistas, jornalistas, clientes, fornecedores, concorrentes, órgãos reguladores e público em geral).

Na vida real, muitas vezes o bom desempenho desses papéis requer a tomada de decisões difíceis entremeadas de incertezas que costumam produzir, ou não, vencedores e perdedores. Seja em razão da mudança de estratégia da empresa para tirar o foco de algum produto ou região em benefício de outro, seja pela mudança de estrutura da companhia ou dos critérios que regem os salários dos executivos, seja pelo adiamento do aumento salarial aos funcionários locais para investimento em recursos no exterior, o líder se vê diante de incertezas e de uma possível resistência. Tomar decisões desse tipo exige que ele tenha capacidade de filtrar o que interessa em meio ao ruído que o cerca para não cair vítima da paralisia. É preciso autoconfiança e, por vezes, ousadia.

Liderar significa também, às vezes, acreditar que algo é possível quando todos à sua volta pensam o contrário. Tome-se o exemplo de Lakshmi Mittal, que hoje controla a maior siderúrgica do mundo. Em 1994, sua empresa aparecia em 32o. lugar no ranking mundial do setor. Imagine como seus gerentes devem ter se sentido quando ele os conclamou a estabelecer uma meta pessoal de crescimento e a colocar como meta para a empresa o primeiro posto no ranking!

É claro que só os líderes mais experientes tomam atitudes estratégicas mais radicais. (E, a propósito, esse tipo de líder raramente é humilde, conformado e despreocupado. Como disse certa vez o general de Gaulle: “A glória só se dá a quem sempre a cobiçou.”). No entanto, todo chefe se vê diante de decisões complexas porque envolvem algum grau de incerteza (e, portanto, é impossível saber ao certo se estão tomando a decisão acertada) e/ou conseqüências negativas para alguns indivíduos, exigindo assim um certo grau de autoconfiança, independência e iniciativa pessoal.

O perigo, evidentemente, é a tênue linha que separa o que ouve com dificuldade do surdo, o autoconfiante do arrogante, o que valoriza o desempenho do insensível e frio. Com o passar do tempo, à medida que o líder acumula sucessos (alguns deles decorrentes de decisões corretas tomadas por ele apesar da opinião antagônica de terceiros), ele tende a se tornar cada vez mais insensível às evidências contrárias ao seu projeto e às advertências de outros, ultrapassando aquela linha tênue já mencionada.

Obviamente, alguns indivíduos se acham mais inclinados a cruzar a linha do que outros. Lembro-me de um executivo experiente que dizia o seguinte: “Minha mãe me disse várias vezes, durante anos a fio, que eu fosse simpático com as pessoas que encontrasse pelo caminho em direção ao topo porque, segundo ela, eu as encontraria novamente quando estivesse fazendo o caminho inverso.” E acrescentou: “Já tive muitos momentos na vida em que, por um triz, não tomei a decisão errada, ou então tomei, e fui salvo por outros das conseqüências do meu erro, portanto tenho consciência de que não sou infalível.”

Contudo, mesmo os indivíduos mais equilibrados devem ter em mente o perigo que enfrentam no momento em que o sucesso começa a anestesiar sua capacidade de julgamento, reduzindo sua sensibilidade aos frágeis sinais que contrariam as decisões tomadas. Alguns gerentes se previnem contra esse perigo cercando-se de uns poucos indivíduos fortes. Um executivo veterano, por exemplo, me disse que sempre escolhe um ou dois dos seus executivos entre os gerentes com histórico de administração geral anterior, normalmente em estruturas menores. Sua experiência é de que indivíduos desse tipo estão mais inclinados a identificarem — e, portanto, não receiam trazer à tona —, possíveis informações ameaçadoras, porém importantes.

O líder precisa também se esforçar para manter e proteger sua “largura de banda”, isto é, sua habilidade cognitiva e emocional de processamento de questões complexas. Muitos gerentes se acham de tal forma atolados e cheios de coisas para fazer que, apesar de sua disposição em se manter abertos, prontos para ouvir, aprender e dar apoio, acabam se tornando inflexíveis, emocionalmente distantes e com expectativas irracionais.

Amar o filho ajuda os pais a se tornarem melhores pais, porém a paternidade eficaz requer mais do que amor apenas. De igual modo, a humildade ajuda o indivíduo a se relacionar com outras pessoas, e pode ser um instrumento muito importante para o líder, mas ser líder/gerente exige muito mais do que isso. Todo líder, principalmente os que ocupam posições mais destacadas, devem ter egos sólidos. Devem ter a habilidade de enfrentar a incerteza e a resistência, de escolher rumos de ação que talvez sejam impopulares e, por vezes até, rumos que tragam desconforto a pessoas e grupos. Devem também aprender sempre, adaptar-se e se desenvolver continuamente, de tal modo que fiquem sempre do lado certo daquela linha tênue já referida.

Esse processo contínuo e que nunca tem fim foi exemplificado por Mahatma Gandhi, que em toda a sua vida sempre tirou um tempo para reavaliar suas ações. Seu secretário, Pyarelal, disse que Gandhi, já bem depois dos 70 anos, fazia diariamente “um momento de recolhimento silencioso em que avaliava cada um de seus atos, por menores que fossem. Nada escapava ao seu escrutínio. Ele era inflexível consigo mesmo nesse aspecto”.


Fonte: Por Jean-François Manzoni, in epocanegocios.globo.com

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