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Caso Fox: O grande erro da Volks

Na indústria automobilística costuma-se dizer que o pior recall é aquele que deixou de ser feito. O raciocínio por trás dessa teoria é que a convocação de milhares de clientes e o reparo de defeitos nos carros, por mais custosos que sejam, é uma opção muito menos arriscada do que enfrentar uma crise de imagem que afete a credibilidade da marca. No entanto, apesar de óbvia, essa regra tácita nem sempre é seguida -- e o resultado final, invariavelmente, é desastroso. Foi justamente esse cenário de desastre que se instalou na operação brasileira da Volkswagen, na qual engenheiros e técnicos correm contra o tempo para solucionar uma falha de projeto em um dos carros mais vendidos da empresa, o Fox. Vinte e dois compradores do carro sofreram acidentes em uma operação que deveria ser corriqueira -- soltar o encosto do banco e rebater o assento para ampliar o espaço do porta-malas. Oito deles tiveram os dedos decepados ao acionar um mecanismo que, para os projetistas do carro, é extremamente simples. Desde o primeiro acidente, registrado em 2004, a direção da Volkswagen sempre insistiu que o problema era das vítimas, que não haviam acionado o sistema corretamente. A posição foi reiterada pelo presidente da empresa, o alemão Thomas Schmall, em uma entrevista ao Jornal Nacional, em fevereiro deste ano. "Basta seguir as instruções contidas no manual do proprietário para fazer a operação de forma correta", disse ele. No entanto, há duas semanas a Volks se comprometeu a encontrar uma solução técnica para o problema e realizar em 60 dias um recall de todas as 477 000 unidades do Fox vendidas no Brasil. A decisão foi uma resposta à pressão do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, do Ministério da Justiça, que ameaçava punir a empresa caso nenhuma medida fosse tomada.

Desenvolver uma peça ou sistema alternativo que transforme o rebatimento do banco do Fox em uma operação totalmente segura não será tarefa simples -- e não há um cálculo confiável que possa avaliar quanto isso vai custar. Desde 2005, a Volkswagem vem fazendo pequenas alterações no dispositivo, mesmo reiterando publicamente que não há nada de errado com o carro. A última delas foi um anel de borracha, que, desde fevereiro, a montadora passou a oferecer e instalar gratuitamente, numa espécie de recall informal. Os técnicos do Ministério da Justiça, no entanto,avaliaram todas as medidas adotadas até agora inócuas. A reformulação total do dispositivo de rebatimento é considerada inviável técnica e economicamente, já que envolveria a estrutura do carro. Da mesma forma, o órgão federal de defesa do consumidor acha que a tentativa da empresa de alertar os proprietários dos riscos e da forma correta de operação do mecanismo é insuficiente. "É uma questão muito complicada, porque, além das mudanças no sistema em si, a solução precisa levar em conta o custo e fatores logísticos, como o tempo que o carro fica parado na concessionária para o reparo", afirma o especialista Paulo Roberto Garbossa, da consultoria ADK Automotive. Caso não apresente uma proposta viável no prazo acertado com o Ministério da Justiça, a Volkswagen está sujeita a ser multada em 50 000 reais por dia. Procurada, a empresa não quis comentar o assunto.


Os riscos do Fox
O sistema de rebatimento do banco traseiro do Fox apresenta três problemas que podem oferecer riscos aos usuários

Argola
É a peça que mais provocou acidentes. A Volks criou um dispositivo de borracha para tentar diminuir os riscos

Trava
No processo de rebatimento do banco, o usuário pode prender a mão sob a trava entre o assento e o assoalho do porta-malas

Alavanca dianteira
Há pouco espaço para a manipulação da peça. Na versão do Fox exportada para a Europa, a distância entre a alavanca e o banco é maior

A pergunta que fica é: o que levou uma empresa como a Volkswagen a se meter numa enrascada desse tipo? A crise do Fox começou a se desenhar ainda na gestão do antecessor de Thomas Schmall, o também alemão Hans-Christian Maergner. Na época, o proprietário de um Fox, o químico Gustavo Funada, entrou em contato com a empresa relatando um acidente com o banco do carro, em que perdeu um dos dedos. Maegner foi o responsável pela decisão de não fazer um recall sob os argumentos de que o acidente era um problema isolado e que o carro não tinha defeitos -- as regras para o rebatimento constavam no manual. "Se nessa hora a empresa tivesse admitido o problema e feito um recall preventivo, os custos e danos teriam sido muito menores", afirma Antônio Gaspar de Oliveira, diretor técnico do Sindicato da Indústria de Reparação de Veículos e Acessórios do Estado de São Paulo. No entanto, no caso do Fox, admitir a falha significaria reconhecer limitações no projeto do carro, uma vez que a concepção do sistema de rebatimento é de responsabilidade da Volks -- ou seja, seria um golpe violentíssimo para a cultura da empresa, que preza acima de tudo a qualidade e a excelência em engenharia. "Se o problema acontecesse em uma peça fabricada por um fornecedor, o recall teria sido imediato", afirma um ex-executivo da companhia.


Os maiores recalls do mundo
As montadoras americanas lideram a lista de veículos recolhidos para reparos (por número de automóveis envolvidos)

Cadillac Escalade EXT
Empresa envolvida: GM
Ano: 2004
Número: 4 milhões de automóveis
Problema: cabos de aço usados na suspensão traseira oxidavam e se partiam
Conseqüência: registro de 134 incidentes
Outros modelos atingidos: Silverado, GMC Sierra e Avalanche

Taurus
Empresa envolvida: Ford
Ano: 2007
Número: 3,6 milhões de automóveis
Problema: o botão do dispositivo limitador de velocidade provocava superaquecimento
Conseqüência: sem registro de acidentes
Outros modelos atingidos: Explorer, F-150 e Ranger

Sebring
Empresa envolvida: Chrysler
Ano: 2004
Número: 2,7 milhões de automóveis
Problema: defeito no câmbio
Conseqüência: a agilidade da montadora evitou problemas mais graves
Outros modelos atingidos: Dodge, Plymouth Breeze

Explorer
Empresas envolvidas: Ford e Firestone
Ano: 2000
Número: 1,6 milhão de automóveis
Problema: desprendimento da banda de rodagem do pneu
Conseqüência: o defeito nos pneus causou mais de 400 capotamentos e cerca de 200 mortes nos Estados Unidos

Excursion
Empresa envolvida: Ford
Ano: 2007
Número: 1,2 milhão de automóveis
Problema: defeito em um sensor pode provocar a parada inesperada do motor
Conseqüência: causou 14 acidentes
Outros modelos atingidos: E-Series, F-450 SuperDuty e F-550 SuperDuty


SEGUNDO APURAÇÃO DE EXAME, a possibilidade de realização de um recall pela Volks foi avaliada em uma série de reuniões que envolveram a cúpula da companhia no Brasil durante o ano de 2004. A posição das áreas de engenharia e jurídica, na época comandadas pelo vice-presidente Holger Westendorf e pelo diretor Ricardo Carvalho, respectivamente, prevaleceram. A área de engenharia ainda hoje não admite que o carro tem problemas. "Para um engenheiro acostumado a desenhar e fabricar carros, o Fox realmente não tem problema, o sistema funciona e o manual é claro a respeito da forma como operá-lo. O problema é que o consumidor comum não acha isso e é ele quem compra e usa o carro", diz o ex-executivo da VW. Já o departamento jurídico, em um primeiro momento, avaliou que poderia ganhar na Justiça todos os processos movidos pelos consumidores com base na tese de que o banco é seguro para quem segue as instruções da montadora. "Houve um erro de avaliação por parte da companhia. Ninguém imaginou que o caso tomasse proporções tão grandes", diz um consultor do mercado automotivo. Por mais de três anos o assunto permaneceu praticamente desconhecido. Durante todo esse tempo, a montadora manteve a posição de que o acidente de Funada foi um caso isolado.


De terceiro para quinto
O Fox caiu duas posições no ranking de carros mais vendidos do Brasil entre o primeiro trimestre de 2007 e o primeiro trimestre de 2008

Primeiro trimestre 2007 (por mil unidades vendidas)
1º Gol 48
2º Palio 45
3º Fox 29
4º Uno 24,5
5º Celta 24

Primeiro trimestre 2008
1º Gol 67
2º Palio 51
3º Celta 35
4º Uno 32
5º Fox 30
Fonte: Fenabrave


Outro fator que contribuiu para fundamentar a decisão dos executivos da Volks foi a posição ambígua do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor quando ocorreram os primeiros acidentes. Há dois anos, o órgão recebeu uma denúncia formal contra a montadora e pediu esclarecimentos. Recebeu a resposta de que se tratava de um caso isolado de desatenção com relação às instruções do manual do veículo. "Investigamos o caso, não encontramos outras vítimas, mas deixamos o processo aberto", afirma Ricardo Morishita, diretor do departamento. Frente ao silêncio do órgão federal, a Volkswagem também deixou o assunto de lado. Quando o caso voltou à tona, no início deste ano, com a confirmação de novas vítimas, os representantes do governo voltaram a exigir esclarecimentos da montadora. A Volks acreditava que, com as medidas que já havia adotado, o problema estaria resolvido. "Desde o início do processo, em março, a empresa não se mostrou disposta a fazer um recall. Chegaram a propor apenas uma campanha publicitária para divulgar os riscos de acidente", conta o diretor executivo do Procon-SP, Roberto Pfeiffer. Outro tropeço da montadora, por exemplo, foi chegar à reunião com o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor e o Procon, em Brasília, na segunda semana de abril, sem um laudo técnico que provasse a eficácia do anel de borracha oferecido em seu recall informal.

O desgaste da imagem da Volks já é considerado inevitável por especialistas do setor. "A resistência em fazer o recall vai cobrar seu preço", diz Ivar Berntz, consultor automotivo da Deloitte. O Fox, que foi o terceiro carro mais vendido do país nos três primeiros meses de 2007, encerrou o primeiro trimestre deste ano na quinta posição. A empresa atribui a queda a arranjos realizados na linha de produção de sua fábrica de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, responsável por parte da montagem do Fox. Segundo a Volks, a produção do Fox foi reduzida para abrir espaço para o novo modelo do Gol, o campeão de vendas da empresa. Consultores da indústria automobilística, no entanto, já vêem nessa queda sinais de que a crise em torno dos acidentes pode ter influenciado as vendas. "Mas o impacto real do problema deverá ser sentido com mais intensidade nos próximos meses", afirma um consultor especializado. Projetado pela filial brasileira e exportado para a Europa, o Fox tem como grande diferencial o fato de ser um automóvel pequeno com amplo espaço interno -- e o sistema de ampliação do porta-malas pelo deslocamento do banco é um dos destaques nessa proposta. "Uma adaptação que anule a funcionalidade do banco do carro, mesmo que em favor da segurança, não é uma solução adequada", diz René Martinez, da Ernst & Young.

Com a crise já instalada, o atual presidente da montadora, Thomas Schmall, tem pouco a fazer. Se voltar atrás e reconhecer o erro, a montadora corre o risco de ser processada por crime de negligência pela Justiça Federal. Advogados ouvidos por EXAME dizem que, depois de negar problemas por mais de três anos, os executivos da Volkswagen correm o risco de prisão caso mudem de posição, por crime de omissão. A lei determina a convocação de um recall imediato a partir do momento em que a empresa toma conhecimento do problema. "Se o defeito é o mesmo desde 2004 e eles só assumem agora, há espaço para uma denúncia criminal", diz a advogada Daniela Ricci, especializada em defesa do consumidor. Isso explica a postura da montadora em insistir na explicação inicial, mesmo sabendo da existência de 22 vítimas, todas elas com processos judiciais abertos contra a montadora. Seja qual for o procedimento da Volkswagen a partir de agora, uma coisa fica clara: o recall que não foi feito vai custar muito mais do que se imaginava inicialmente.


Fonte: Por Marcelo Onaga e Paula Barcellos, in portalexame.abril.com.br

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