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Starbucks paga caro por perder a identidade

Uma das histórias mais repetidas em inúmeras entrevistas e palestras pelo americano Howard Schultz, presidente da maior rede de cafeterias do mundo, narra o dia em que ele entrou pela primeira vez numa loja da Starbucks, em Seattle. "Um inebriante aroma de café me atraiu", afirmou no best-seller de sua autoria Dedique-Se de Coração, lançado em 1997 e traduzido para oito idiomas. "Entrei e vi um templo para a adoração do café." O ano era 1981 e Schultz trabalhava como gerente de um fornecedor de máquinas de café para a Starbucks. Ao comprar a rede, em 1987, com a ajuda de investidores, ele conseguiu transformar aquele encanto em dólares -- milhões de dólares. A continuação desse conto de fadas corporativo deu origem a diversos livros de administração e é dissecada nas salas de aula das melhores escolas de negócios do mundo, como a americana Harvard e a suíça IMD. Sob o comando de Schultz, a Starbucks deixou de ser uma tímida cafeteria no interior do estado de Washington e se tornou uma potência, com vendas de 9,4 bilhões de dólares em 2007. Quem hoje entra em uma de suas 15 000 lojas espalhadas por 44 países, no entanto, não encontra o mesmo ambiente -- nem sente o mesmo aroma -- que tanto impressionou o empresário nos anos 80. Criada como torrefação e loja de grãos de café, a Starbucks ganhou ao longo do tempo um amplo cardápio de refeições. O cheiro do café foi encoberto pelo de ovos e bacon, servidos em sanduíches no café da manhã. O próprio Schultz reconhece que o charme original se perdeu. Em fevereiro de 2007, ele escreveu num memorando para a diretoria: "Nossas lojas não têm mais a alma do passado. Refletem mais uma grande cadeia e menos a sensação confortável de uma loja de bairro".

A perda da identidade -- que acabou transformando o antigo santuário do café numa ordinária lanchonete de fast food -- não causa só nostalgia em Schultz. Trata-se de um problema que tem afugentado clientes e feito as ações da companhia cair. Nos Estados Unidos, onde estão mais de dois terços de suas lojas, o número de consumidores diminuiu 1% entre julho e setembro de 2007. Foi o primeiro resultado negativo na história da rede -- mas não o pior. Nos três meses seguintes, a clientela caiu outros 3%. Para agravar o quadro, a Starbucks recentemente reconheceu que não está imune aos dissabores da economia americana, como costumava declarar. Embora as vendas e o lucro tenham apresentado uma trajetória ascendente até agora (sobretudo graças à abertura de novas lojas), o crescimento desacelerou -- de 2004 para 2007, passou de 10% para 5%. Esse encolhimento se reflete na bolsa. Os papéis da empresa acumulam queda de cerca de 50% nos últimos 12 meses -- e chegaram a cair mais de 10% no dia 24 de abril, após a divulgação preliminar do resultado do primeiro trimestre de 2008.

Para tentar estancar as perdas, em janeiro Schultz destituiu o executivo Jim Donald da presidência e voltou para o cargo que abandonara oito anos atrás -- medida clássica na hora do aperto, adotada recentemente também por Michael Dell, dono da fabricante de computadores que leva seu sobrenome, e por Jerry Yang, do Yahoo!. "Schultz tem o pulso da companhia e a capacidade de restaurar a admiração que a marca despertava antes", diz o americano David Palmer, analista especializado no setor de alimentação, do banco de investimento UBS. Agora, o empresário tem pela frente a irônica missão de copiar a si mesmo e retomar conceitos que ajudou a disseminar mundo afora no passado -- e que se perderam em meio ao crescimento vertiginoso. Sua maior desvantagem é que desta vez a concorrência não será pega de surpresa, como nos anos 80. Enquanto a Starbucks se afastava do próprio modelo, redes como McDonald's reforçavam a oferta de café e refaziam o visual de suas lojas -- em janeiro, a cadeia de fast food começou a contratar baristas para suas 14 000 lojas espalhadas pelos Estados Unidos. "A fórmula da Starbucks já foi copiada por muitos concorrentes. Por isso, a empresa vai ter de inovar para reconquistar o interesse dos consumidores, seja em produto, serviço, seja em comunicação", diz Dominique Turpin, professor de marketing da IMD. A primeira medida de Schultz foi decretar que, até setembro deste ano, a linha de sanduíches recheados com ovos e bacon, servidos no café da manhã em lojas da América do Norte, será extinta. O resgate aos bons tempos incluiu a volta de outro veterano -- Harry Roberts, vice-presidente de merchandising da rede nos anos 90. Aos 65 anos, Roberts retorna à Starbucks como principal executivo de criação, cargo criado em janeiro. Ele terá não só de recuperar o poder de atração do passado como também de criar novas maneiras de cativar o público.


Um plano de resgate
Desde que reassumiu a presidência da Starbucks, em janeiro, Howard Schultz anunciou uma série de medidas para tentar dar fôlego novo à empresa

1 - Em janeiro, ele criou um cargo, o de principal executivo de criação, cujo trabalho é repensar o ambiente das lojas. Para ocupá-lo, convidou Harry Roberts, vice-presidente de merchandising da rede nos anos 90
2 - Demitiu 220 funcionários de diversas áreas e fechou outras 380 vagas abertas nos Estados Unidos
3 - Comprou em março a fabricante das máquinas Clover, uma das favoritas dos amantes de café. Os equipamentos já foram instalados em lojas de Boston e Seattle
4 - Estreou em março um blog para receber sugestões e críticas de consumidores, que são comentadas por executivos da rede
5 - Tirou do cardápio da Starbucks uma linha de sanduíches quentes, servidos no café da manhã. Os consumidores reclamavam que as lojas ficavam com cheiro de lanchonete de fast food
6 - Em abril, ampliou os benefícios concedidos pelo uso do cartão de fidelidade da rede.Agora, eles dão direito a brindes como refis de café


O PACOTE DE RECUPERAÇÃO de Schultz inclui desde alterações estruturais nas lojas até outras mais drásticas, como o encolhimento da operação nos Estados Unidos (veja quadro na pág. 99). Recentemente, Schultz anunciou que até o fim do ano vai fechar cerca de 100 lojas americanas pouco rentáveis. Na sede da empresa, em Seattle, 220 funcionários de áreas como marketing e departamento financeiro foram demitidos. Outras 380 vagas abertas nos Estados Unidos foram fechadas. O objetivo é repensar a expansão no mercado doméstico, no qual o número de lojas mais que triplicou desde o ano 2000, alcançando 10 000 pontos-de-venda. A profusão gerou uma concentração de cafeterias excessivamente próximas. "Estimamos que a canibalização tenha derrubado as vendas nas lojas do país em cerca de 1%", diz o analista Steven Kron, do banco de investimento Goldman Sachs, num relatório publicado no início deste ano.

Na tentativa de reaproximar-se de seu público original, os adoradores de café, a prioridade da Starbucks se volta para a qualidade da bebida e do serviço dos baristas. Para tanto, uma das iniciativas é renovar os equipamentos da rede. Uma nova máquina de expresso será introduzida em todas as novas lojas no exterior e em 75% da operação americana até 2010. O equipamento é 18 centímetros mais baixo que o atual -- o que permite que os clientes assistam ao preparo da bebida. A Starbucks também anunciou, em março, a compra da fabricante americana das máquinas Clover (o valor não foi revelado). Queridinha dos amantes de café gourmet, a Clover permite dar a cada xícara um sabor diferente. Hoje, existem apenas 250 máquinas instaladas em todo o mundo -- um luxo que se tornará exclusividade da Starbucks. A idéia é colocar a Clover nas lojas como uma opção para os freqüentadores que procuram um café mais sofisticado. Um cafezinho tirado dessa máquina custará 2,50 dólares, 1 dólar a mais do que o comum. Para preparar os atendentes para a nova fase, 7 100 lojas da rede nos Estados Unidos fecharam as portas às 17h30 do dia 26 de fevereiro. Durante 3 horas, 135 000 funcionários foram treinados simultaneamente. Eles receberam orientação de como despejar o café em copos de vidro para verificar a qualidade da bebida pela cor.

Schultz também incrementou os tradicionais cartões de fidelidade da rede. Desde abril, quem tiver um cartão poderá ganhar brindes como leite de soja grátis nas bebidas, refis de café e uso de internet por 2 horas diárias nas lojas. Para sentir a reação dos consumidores a tantas mudanças, Schultz acaba de criar um blog corporativo. A idéia é abrir espaço para que os freqüentadores dêem sugestões e os executivos expliquem ou mesmo antecipem algumas novidades. Além disso, desde que voltou para o posto de principal executivo, Schultz já escreveu 14 comunicados abertos no site da Starbucks -- quase um por semana --, batizados de Howard Schultz Transformation Agenda Communication (algo como "Comunicação da pauta de transformação de Howard Schultz"). Ali ele antecipou, por exemplo, o radical plano de reduzir a operação americana.

As quase 5 000 lojas da Starbucks no exterior também sentiram reflexos das mudanças. Na semana em que voltou para o posto de principal executivo, Schultz organizou teleconferências com os parceiros que tem pelo mundo. "A mensagem foi: cresçam", afirma o americano Peter Rodenbeck, que trouxe a rede para o Brasil e já abriu dez lojas no país -- todas em São Paulo. A conversa com Schultz e com cerca de outros 20 representantes das Américas e da Europa durou aproximadamente 20 minutos. A ordem para acelerar os motores tem motivo. Desde 2006, as vendas em lojas estrangeiras crescem mais do que as dos Estados Unidos. Apesar dos fechamentos em território americano, o plano no longo prazo (não há data definida) ainda é atingir 40 000 lojas no mundo, metade delas no exterior. Por isso, em 2009, pela primeira vez em sua história, a rede deve abrir mais unidades fora do mercado doméstico. No Brasil, o objetivo é abrir duas ou três lojas por trimestre. "Estamos apenas começando", diz Schultz num de seus comunicados da pauta de transformação. Na verdade, recomeçando.


Fonte: Por Larissa Santana, in portalexame.abril.com.br

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