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Direito Digital: Falsa identidade e traição pela Internet

Vamos a mais um exercício de raciocínio em um caso fictício. Um homem casado, descobre que sua esposa tem um perfil em comunidade de relacionamento e desconfia que a mesma está se comunicando com outro homem, agendando encontros e o “traindo na Internet”. Ao questionar a esposa sobre se a mesma tem perfil em tal comunidade ouve um nítido “não sei nem o que é isso!”.

A esposa mente. Dentre os scraps e mensagens visíveis ao público denota-se que um ex-namorado insiste em reestreitar relações com a mulher. O marido então pressiona novamente a esposa sobre eventual existência de perfil na Comunidade de Relacionamentos! A resposta é insistentemente negativa! Neste ínterim, o marido, especialista em informática, percebe que o Perfil do homem é excluído.

O que lhe vem à mente então?

Recriá-lo! Se passar pelo ex da esposa, provocá-la, e constatar com os próprios bits que estava sendo traído. É então que faz um “fake” com uma arquitetura invejável, fotos e preferências do rapaz (que já estavam salvas em seu pc) textos, profissão, tudo idêntico ao mesmo. Ele então adiciona a esposa, ela aceita a amizade.

Neste ponto começam as provocações e a primeira assertiva lançada é “Como foi, foi bom para você?”. Como num banho de água fria ele recebe a resposta de sua esposa “Do que você está falando?”. Ele insiste dizendo “Sempre te quis muito, vamos combinar de sair?”. A reposta é categórica “Você está louco! Sou casada agora!”.

A mulher não o traía! Porém, como inerente ao clássico princípio universal da “ação-reação”, a esposa liga para o ex-namorado para tomar satisfações e esclarecer os comentários feitos. Foi então que ficou pasma em saber que não era ele, pois ele sequer tinha mais perfil na comunidade, excluído a pedido de sua então namorada!

A esta altura, conta ao marido que tinha um perfil, mas que nunca havia feito nada de errado, e que não achava certo as mensagens que recebera do ex-namorado. O ex, enfurecido, procurou uma delegacia e interpôs um pedido de quebra de sigilo informático, em busca do usurpador.

Em questão de dias saberá que quem criara seu perfil era o Marido de sua ex-namorada, sendo claro que dificilmente o casamento resistirá a este golpe baixo e sorrateiro!

Mas, quem errou aqui? Evidentemente que a mulher não agiu corretamente em não contar sobre seu perfil no Orkut, ainda mais para um técnico na área, que facilmente o detectaria em uma busca “jurássica”. Por outro lado, tal fato jamais legitimaria a conduta do marido, que se passou por outra pessoa no sentido de obter uma confissão da mulher.

Neste aspecto, ao tentar retirar de forma “preparada” uma confissão da mulher que desabonasse sua conduta enquanto esposa, o que não correspondia à realidade dos fatos, este homem ofendeu gravemente sua honra com uma atitude infundada e uma investigação que extrapolou todos os limites permitidos pela Lei.

Assim segundo o Código Civil Brasileiro, em seu art. 1573, caberia a mulher ação de separação imputando ao marido ato que importe em grave violação dos deveres do matrimônio ou a impossível continuação da vida em comum, pela conduta desonrosa do mesmo. Cabe destacar que o Juiz pode considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum, como os novos atos praticados pela Internet, dentre os quais, mas não se limitando a casamentos em metaversos, dupla identidade, falsear estado civil em comunidades de relacionamento, participar de comunidades desonrosas, dentre outros fatos trazidos pelo advento da tecnologia.

No aspecto criminal, este marido ainda poderá responder por falsa identidade, previsto no artigo 307 do Código Penal Brasileiro, “Atribuir-se ou atribuir falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem”, tendo uma pena de detenção de três meses a um ano.

A identidade hoje é virtual, e não se pode mais conceber que possa ser considerada tão somente “todos os elementos de identificação civil da pessoa”. Seja como for, estes elementos hoje estão em “meio eletrônico” e merecem a proteção da Lei. Temos pois que considerar uma conta em um comunicador instantâneo ou um perfil no Orkut como identidade virtual da pessoa, desde que carreados com dados reais de identificação civil da mesma.

Já se admitiu até mesmo a falsa identidade “verbal”, o que dizer então da “virtual”, que deixa rastros? Assim como falsear a carteria de identidade, substituindo a fotografia original no escopo de ingressar livremente em casas de diversões, podemos em analogia prever que aquele que insere fotos de terceiros em perfil de comunidade, para fins de ingressar na seara de privacidade de outra pessoa, também pratica o crime.

Ademais, não é necessário nem a obtenção de vantagem financeira para a consumação do crime, bastando que acarrete em desvantagem moral para outra pessoa, como no excelente julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, que condenou uma senhora casada muito astuta, que se utilizava do nome de amiga para se comunicar com jovens garotos, vejamos:

TACRSP: “Falsa identidade. Senhora casada, que se utilizava do nome de uma amiga nas conversas telefônicas e cartas amorosas dirigidas a jovens de sua preferência. Dano moral sofrido por aquela, que chegou a ser assediada pelos rapazes, tendo que recorrer a Polícia para desfazer a trama em que se vou envolvida. Condenação decretada. Apelação provida. Inteligência do art. 307 do Código Penal. O delito do art. 307 do Código Penal consiste em atribuir-se o agente uma falsa identidade, visando à obtenção de uma vantagem pessoal ou causar um dano para alguém. O dano ou a vantagem tanto podem ser patrimonial como moral” (RT 464/296-7). In (MIRABETE, 1999)

Aqui também cabe aquela hipótese comum nos dias de hoje, onde o marido usa o nome de um “amigo” para cadastrar nome e número de amante em sua agenda no telefone celular. Um belo dia a esposa se apossa do celular do marido, e liga para o tal “Pedro”, e quem atende é uma voz suave e feminina que diz “Oi amor!”…Percebam, esta esposa nunca mais olhará para o tal “amigo” do marido com os mesmos olhos! Ele então é vítima de falsa identidade eis que o marido atribuiu a ele (terceiro) uma falsa identidade, que o prejudicou moralmente. Lógico, isso tudo somente se ele (amigo) não sabia de nada!

Em síntese, este marido além de perder seu casamento, responder na seara cível por danos morais ao “ex-namorado” de sua esposa, ainda responderá criminalmente em uma ação penal onde o Estado é o lesado e o Promotor de Justiça é interessado, e se o segredo de justiça não for aplicado, certamente integrará o rol de julgados interessantes em Direito Digital.

O crime de adultério, previsto no artigo 240 do Código Penal, cujo bem jurídico tutelado era a regular formação da família, já não mais existe no ordenamento. Hoje pode apenas ser usado como fundamento para separação cível e eventual dano moral. Seja como for, o adultério é um crime de concurso necessário e que exige “ato sexual”, ou seja, não bastando um simples “flirt” comum na Internet. Até mesmo o sexo virtual, pode ser entendido, ainda que forçosamente, como “colóquio amoroso”, que pode caracterizar injúria, mas não adultério. Adultério requer prova inequívoca da prática sexual, que pode ser obtida sim, por meio eletrônico, como por exemplo, uma confissão da adúltera em chat na web ou e-mail.

Nada veda a produção de provas, desde que sejam legais! O que não se pode é agir como o marido que aqui ilustramos, que além de produzir uma prova ilícita, praticou crime, e ainda que conseguisse identificar eventual troca de mensagens entre sua mulher e ex-namorado, tal fato não caracterizaria, por si só, adultério. Agora, está profundamente encrencado.


Fonte: Por José Antonio Milagre - Pesquisador em CyberCultura; Advogado especialista em Direito Digital, in Legal Tech

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