O principal
motor do sistema capitalista é o capital. Melhor dizendo, o lucro, que Karl
Marx cunhou de forma crítica como mais-valia. Desde a concepção do sistema,
entretanto, muita coisa aconteceu - da queda do muro de Berlim e dos regimes
comunistas à chegada da Geração Millennial ao mercado de trabalho - e tornou
cada vez mais iminente a necessidade de revisão daquele guia original dos
negócios, representado por cifrões. Hoje, as empresas despertam, pouco a pouco,
para a importância de se buscar propósitos mais nobres para as suas atividades,
enxergando o lucro como resultado e não como objetivo maior.
A nova
mentalidade, entretanto, não pode se resumir a uma maquiagem para levar a
organização ao sucesso na nova era, e esse é um dos desafios assumidos por Raj
Sisodia, Cofundador e Copresidente do Instituto Capitalismo Consciente, que
esteve no Rio de Janeiro na última semana durante o evento Sustainable Brands.
A entidade
sem fins lucrativos criada por Sisodia já está em seis países, além dos Estados
Unidos, entre eles o Brasil, o que demonstra que cada vez mais empresas
despertam para as novas demandas do mundo contemporâneo. Mas o percurso ainda é
longo. “Muitas companhias e, especialmente, muitos líderes, chegaram até aqui
em um modelo mental de que os negócios devem estar direcionados para a
maximização dos lucros. E muitos desses líderes são pessoalmente motivados por
seu próprio poder e seu próprio enriquecimento. Eles se tornaram líderes porque
queriam ganhar muito dinheiro. É muito difícil tornar esse tipo de líder
consciente, porque ele, na verdade, está usando as outras pessoas para alcançar
o sucesso pessoal dele”, diz o guru indiano, em entrevista exclusiva ao Mundo
do Marketing.
Mundo do Marketing:
Você acredita que ocorreu uma transformação na mentalidade das empresas ao
longo dos últimos anos?
Raj Sisodia: O
propósito está se tornando praticamente uma ideia mainstream. É curioso.
Ensinei Marketing e estratégia por quase 25 anos sem usar a palavra propósito.
Por que ensinávamos, em Administração de Negócios, que o propósito das empresas
já era dado a nós: maximizar os lucros. Aceitávamos essa ideia sem questionar. Foi
somente pesquisando para meu livro que percebi que deveria haver um propósito
além do lucro. Antes de conversarmos sobre estratégia temos que falar sobre o
propósito, que aponta para onde estamos indo.
Depois, é
possível pensar em como chegar lá. Cada vez mais companhias estão percebendo
que só ter o lucro como propósito não é suficiente. Ele é o resultado de agir
guiado pelo propósito, de uma forma eficiente. O lucro não inspira ou energiza
ninguém, não atrai profissionais, o que faz com que se tenha que investir muito
em publicidade e em promoção para convencer os consumidores a comprar.
Mundo do Marketing:
Por que as empresas estão acordando para a importância de terem um propósito
que vá além dos ganhos financeiros?
Raj Sisodia: Elas
estão reconhecendo que a antiga forma de atuação não está funcionando.
Funcionou por um tempo, mas o mundo mudou dramaticamente. A partir de 1989, o
mundo entrou em uma nova fase. Chamamos de Era da Transcendência, em que as
pessoas estão indo além do material e passam a se preocupar com outras questões
também. Muitas coisas aconteceram nos últimos 25 anos, como o colapso do
comunismo, a queda do Muro de Berlim, a invenção da rede mundial de
computadores, um crescimento na transparência, no acesso à informação, estamos
mais conectados, inteligentes, educados, conscientes, vemos a alta dos valores
femininos. São mudanças importantes na sociedade que estão surgindo juntas. O
impacto total é grande.
A forma como
o mundo girava até os anos 1980 não funciona mais, o que gera confusão. Mas
muitos estão se perguntando como ser relevante na vida das pessoas e ter um
impacto positivo de verdade no mundo. Alguns, entretanto, praticam apenas
greenwashing ou contratam uma boa agência de publicidade para chegar a um
propósito com uma boa sonoridade, mas que não passa de um slogan. Ele precisa
ser real. O propósito deve ser verdadeiramente profundo e autêntico, em nome do
qual a empresa está disposta a sacrificar outras coisas. É o que a companhia
defende. É preciso partir do propósito para criar valor para todos os
stakeholders, para diferentes tipos de líderes e de culturas.
Mundo do Marketing:
E como companhias que foram guiadas pelos lucros por décadas podem buscar seus
propósitos e mudar de atitude?
Raj Sisodia: Se
voltarmos à história da empresa, ao início, e entender por que ela foi criada,
quais eram as paixões e as crenças dos fundadores, na maioria das vezes, vamos
encontrar algum propósito. Costuma haver um propósito original, mas com o
passar do tempo, à medida que a companhia cresce, os fundadores vão embora,
tudo passa a girar em torno de dinheiro. O que fazia a empresa especial se
perde. É preciso voltar e redescobrir a essência. Muitas organizações estão
fazendo isso. Há consultorias que ajudam nessa busca. A questão é que elas não
podem trazer nada pronto. Devem trabalhar com a empresa para entender,
entrevistar muitas pessoas, entre empregados que atuam na companhia há muito
tempo e outros stakeholders.
E isso é
algo de que o mundo precisa. Uma empresa deve ser significativa para o mundo,
de modo a importar para as pessoas. Mas se a organização nunca teve um
propósito e sempre foi guiada apenas pelo lucro, mesmo assim, da mesma forma
que acontece com os seres humanos na meia-idade, ela pode se ver diante de uma
crise existencial e buscar seu propósito. Pode chegar à conclusão de que não
tinha esse Norte ao longo da história, mas hoje, diante do que é, do que faz
bem e do que o mundo precisa, pode encontrar essa essência, que faça a
diferença para as pessoas e o todo.
Mundo do Marketing:
Qual o papel das novas gerações nesse processo de mudança no modelo
capitalista?
Raj Sisodia: Os
Millennials cresceram com todas essas mudanças: a rede de computadores, as
mídias sociais, a conectividade. E eles são muito inteligentes também. A
inteligência está crescendo a cada nova geração. Se comparássemos o QI desses
jovens hoje com os de 80 anos atrás, eles seriam considerados gênios. Além
disso, eles são da geração que mais busca propósito e significado. Antes, as
pessoas chegavam a esses questionamentos a partir da meia-idade, mas muitos
Millennials já se deparam com eles ainda na adolescência. Isso leva a mudanças
de comportamento, primeiramente enquanto funcionários.
Eles estão
mais engajados em fazer algo que mude o mundo. E também enquanto
empreendedores, buscam propósito, está no jeito natural de viver deles. O
desafio principal é que grande parte não confia nas empresas. Acha que são más
e egoístas, o que leva os jovens, muitas vezes, a criarem ou atuarem em
organizações sem fins lucrativos. Tentamos mostrar que os negócios podem ser
belos, tendo um grande impacto positivo no mundo, por serem capazes de escalar
sua atuação sem serem dependentes de doações.
Mundo do Marketing:
Apesar de todas as polêmicas envolvendo as plataformas, a Economia Compartilhada pode ser um novo caminho para o
capitalismo?
Raj Sisodia: Toda a
ideia do capitalismo é baseada na liberdade econômica e política. Então as
pessoas deveriam ser livres para agir e tentar novas coisas. Temos uma
infraestrutura existente: temos táxis e hotéis, assim como licenças e
regulações que mantêm toda essa estrutura no lugar. Quando surgem as
alternativas, temos que pensar em como fazer para que a transição ocorra e
todas as opções possam coexistir. Nem todo mundo deseja se hospedar pelo
Airbnb. É preciso calcular como fazer a transição de uma forma suave. De um
modo geral, acho a tendência positiva, especialmente quando a economia
compartilhada chega aos carros, porque, se você olhar pelo ponto de vista da
sustentabilidade, os automóveis costumam estar ociosos na maior parte do tempo
e, quando começamos a usar infraestrutura compartilhada, é possível satisfazer
as necessidades de transporte das pessoas com muito menos veículos.
Portanto, há
menos impactos em consumo de energia, de materiais, na construção e no descarte
dos carros. Um número menor de automóveis pode então prover o mesmo valor para
os consumidores, o que é melhor em diversos campos. O que temos que garantir é
que o novo modelo não destrua muitos empregos do modelo tradicional, mas acho que
encontraremos um caminho nesta nova proposta, em que não se paga pela
propriedade, mas pelo uso. As companhias devem deixar de lucrar com a venda
para ganhar com o uso do carro ou de outra infraestrutura. Então, tudo se torna
um serviço. Você não compra mais tantos produtos, mas paga pelo que eles fazem.
E isso muda a lógica de produção, porque o incentivo para a indústria passa a
ser o de criar um produto que vá durar por muito tempo. Como pneus, que serão
muito melhores se forem capazes de rodar cinco mil milhas do que se custarem
US$ 5,00, mas forem descartados rapidamente.
Mundo do Marketing:
Mas hoje o que mais vemos são produtos descartáveis, feitos por indústrias que
se apoiam na obsolescência programada para vender mais e mais…
Raj Sisodia: A maioria
das companhias age como se não houvesse futuro e o futuro é um stakeholder.
Quando você é consciente, começa a pensar nas consequências de longo prazo das
suas ações de hoje e a pensar nas consequências dessas ações na vida de outras
pessoas. Ou seja, os efeitos não só em meu próprio bem-estar e nos meus lucros,
mas nos dos demais. Isso é o que significa ter um negócio consciente.
Mundo do Marketing:
O que as empresas ainda não compreendem sobre o movimento do capitalismo
consciente?
Raj Sisodia: Muitas
companhias e, especialmente, líderes chegaram até aqui em um modelo mental de
que os negócios devem estar direcionados para a maximização dos lucros. E
muitos desses líderes são pessoalmente motivados por seu próprio poder e seu
próprio enriquecimento. Eles se tornaram líderes porque queriam ganhar muito
dinheiro. É muito difícil tornar esse tipo de líder consciente, porque ele, na
verdade, está usando as outras pessoas para alcançar o sucesso pessoal dele.
Essa é a definição de um tirano, não de um líder. Ele sabe como entregar
números, como cortar custos, mas não está focado em gerar impacto na vida das
pessoas. Nem parece se importar muito com isso. Se falarmos com esses líderes
sobre o capitalismo consciente, eles não entendem porque acham que está tudo bem.
Não compreendem os problemas que estão ocorrendo dentro da empresa.
Algumas
vezes, é preciso buscar uma nova liderança que seja motivada por propósito e
por serviço às pessoas e não apenas por poder e pela riqueza pessoal. As
empresas que têm esse tipo de líder no quadro de diretores e essa mentalidade
são mais bem-sucedidas financeiramente no longo prazo. Mas algumas pessoas não
acreditam nisso. Se não estiverem focadas no lucro, como poderão ser rentáveis?
Mas é como a felicidade. Se você apenas tentar ser feliz, você não o será. É
preciso conduzir sua vida de uma determinada maneira para ser feliz. O mesmo
ocorre com os negócios. Se uma empresa é criada com base em cuidado e amor e
cresce com os seus erros, o lucro virá, ele é o resultado. É uma mudança de
mentalidade. Nossa concepção é a de que o capitalismo consciente pode envolver
qualquer negócio, especialmente os que visam o lucro, que são a maioria.
Acreditamos
que o lucro é necessário no mundo, porque, se não for assim, aparecem as taxas,
para que o governo possa financiar a infraestrutura e os serviços sociais, como
a educação pública e a saúde pública. O problema é que, anteriormente, o lucro
era perseguido em detrimento de outras questões, levando a outras formas de
danos: no ambiente, na saúde das pessoas, no bem-estar, no estado mental das
pessoas… O que estamos dizendo é que é possível ter lucro para investidores ao
mesmo tempo em que se gera impacto na sociedade, mantendo um propósito social.
É possível fazer o bem a todos os stakeholders ao mesmo tempo e gerar um
impacto ainda maior no mundo.
Fonte: Por Renata Leite, em Mundo do Marketing,
disponível em http://boo-box.link/22A30
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