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Longe do consumidor

Como sabemos, o poeta português Fernando Pessoa tinha múltiplos interesses e revelou-se um excelente cronista de assuntos comerciais. Mas como ninguém é perfeito, era também um ardoroso anglófilo e escreveu certa vez uma diatribe contra o que chamou de "perfídia" alemã na então Índia britânica. Naquela época a Índia era um excelente mercado para os ingleses, e uma firma de Birmingham exportava todos os anos para o país asiático uma grande quantidade de peças de porcelana usadas para servir ovos quentes. De repente, os pedidos começaram a minguar e os ingleses descobriram que um representante comercial alemão fora enviado à Índia, e havia percebido que os utensílios ingleses eram pequenos demais para os ovos das galinhas indianas. Encomendou então peças maiores à sua matriz e, agora, estava conquistando o mercado.

O grande Pessoa que nos perdoe, mas deveria ter elogiado essa singela lição de marketing do vendedor alemão, que fez aquilo que os ingleses deveriam ter feito desde o início: conhecer melhor o próprio mercado. Lembramos dessa história porque as empresas brasileiras de produtos destinados ao consumidor estão correndo sério risco de ser vítimas da "perfídia" chinesa, coreana ou indiana, em nossa própria casa. Fala-se muito dos preços baixos das mercadorias chinesas, mas poucos comentam a extraordinária capacidade que os chineses demonstram ao desenvolver produtos destinados a culturas completamente diferentes da sua.

O que está acontecendo Assistimos, no momento, ao surgimento de uma nova classe média no País, formada por famílias das classes C/D que estão melhorando sua situação econômica e adquirindo novos hábitos de consumo. Não se trata de um fenômeno repentino, como muitos acreditam. É o resultado de uma evolução social e econômica iniciada pelo Plano Real, e que explode agora nas vendas de apartamentos populares, móveis e eletrodomésticos, carros e motos baratas, alimentos mais elaborados e roupas de melhor qualidade.

Já houve antes um fenômeno parecido, entre os anos 50 e 70, quando se formou a nossa primeira classe média urbana. Mas havia uma grande diferença: essa primeira classe média foi constituída por famílias de origem e composição semelhantes às das classes superiores do Brasil naquele tempo. Tinham os mesmos valores culturais, costumes e aspirações. Foi fácil, para as empresas da época, estender a essa primeira classe média os conceitos avançados de higiene, limpeza, moda e comportamento.

Além disso, aqueles fabricantes tiveram a seu favor dois fatores que não são possíveis hoje. Utilizavam maciçamente a propaganda que, então, era mais barata e eficiente do que é hoje. Ao mesmo tempo, dominavam o ponto-de-venda, por meio de exposições e promoções nas lojas e nos supermercados. Hoje, o varejo tem seus próprios interesses e dificulta essas ações.

Por fim, a nova classe média é constituída principalmente por famílias com valores e costumes próprios. Portanto, não se trata simplesmente de uma questão de preço. É preciso compreender melhor as aspirações, as preferências e o comportamento dessas pessoas, numa autêntica operação de antropologia do consumo. Algumas empresas estão aprendendo isso na prática. A Brastemp, por exemplo, descobriu que seus consumidores oriundos das classes C/D preferem painéis coloridos nos aparelhos da linha branca. E os fabricantes de conjuntos de som já sabem que esses novos compradores gostam de amplificadores mais potentes. Chamou-nos também a atenção o projeto realizado pela Unilever no Nordeste, quando foram estudados os hábitos de limpeza doméstica das classes mais humildes. Resultou desses estudos uma nova família de produtos especialmente criados para essa dona de casa, com características inéditas até então. Curiosamente, nem sempre o preço menor foi a característica dominante desses novos produtos.

Elitismo. Uma das razões que tornam difícil o entendimento das verdadeiras necessidades e aspirações da classe média emergente é o elitismo que predomina nas grandes empresas. Atualmente, elas abrigam uma geração inteira de executivos e trainees recrutados nas melhores escolas do país. Muitos deles falam inglês e fizeram cursos no exterior. Isso é ótimo, mas seria ainda melhor se conhecessem igualmente bem o próprio país. Esses moços tornam-se executivos e assumem a liderança dos negócios sem nunca sair do seu meio social. Vivemos hoje em mundos reclusos, polarizados entre ricos e pobres, e isso contribui ainda mais para acentuar a ignorância do que ocorre fora de nosso círculo de relações.

O que poderia ser feito para atenuar este problema? Citaremos novamente um exemplo que vem da Unilever. Recentemente, Vinicius Prianti, presidente da empresa no Brasil, contou-nos que iniciou há quatro anos uma experiência pioneira, com a formação de um grupo de trainees recrutados entre adolescentes das classes pobres. Esses moços têm bolsas para completar os estudos e recebem como tutores, na Unilever, outros trainees oriundos de classes mais favorecidas. Os primeiros desses jovens se tornarão executivos no próximo ano e a esperança é que eles agreguem a própria visão social à cultura dominante na empresa. Mas existem outras formas de compreender melhor as aspirações da nova classe média emergente. Basta prestar atenção à experiência das grandes lojas populares, como a Casas Bahia. Penso que o sr. Samuel Klein, sozinho, fez mais pela inclusão social no Brasil do que todo o Bolsa Família do governo do presidente Lula.


Fonte: Por Francisco Gracioso, in epocanegocios.globo.com

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