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As ONGs também querem lucro

Por definição, nas organizações não-governamentais (ONGs), lucro é um conceito inexistente. Seja qual for a finalidade, ela deve estar dissociada da idéia de ganhar dinheiro. Essa característica fundamental das ONGs fez com que, por muito tempo, qualquer sinal de capitalismo fosse execrado. O preço pago, no caso de muitas delas, foi a ineficiência e o desaparecimento. "A competição na área social hoje é enorme e só sobreviverão as ONGs que aprenderem a gerir seus recursos de maneira eficiente", diz Eduardo Carneiro, presidente da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), uma das mais tradicionais organizações não-governamentais do Brasil. Essa competição -- por dinheiro, visibilidade, influência ou pelo tempo das pessoas -- vem cada vez mais pressionando ONGs como a AACD a incorporar práticas típicas do mundo dos negócios. Há cerca de um ano, 15 executivos da entidade iniciaram a maior reestruturação já feita em seus 57 anos de existência. Os resultados financeiros apareceram rapidamente. A AACD terminou 2007 com 8,7 milhões de reais em caixa -- ante um déficit de 1 milhão de reais no ano anterior. Com isso, os resultados sociais -- aqueles que importam ou que deveriam importar para todas as ONGs -- também melhoraram. No ano passado, 1,2 milhão de crianças foram atendidas pela AACD, aumento de 4% em relação a 2006.

A apropriação de conceitos típicos do mundo dos negócios ainda é uma exceção entre as cerca de 300 000 ONGs atuantes no Brasil, que em geral ignoram qualquer prática de boa gestão. Aos poucos, porém, casos como o da AACD vão se multiplicando (veja quadro ao lado). Um indicador é a expansão -- ainda tímida -- da área de Terceiro Setor da operação brasileira da KPMG, uma das maiores auditorias do mundo. A KPMG possui hoje 74 clientes do Terceiro Setor no país, sendo que dez deles contrataram os serviços a partir de janeiro deste ano. (Nos Estados Unidos, o mesmo departamento da KPMG audita 896 ONGs.) "Quase 90% das entidades que nos procuram não têm sequer processos contábeis básicos para que possamos fazer nosso trabalho", diz Marcos Boscolo, diretor da KPMG. "Muitas delas começam a buscar eficiência, mas poucas já têm uma boa história para contar."

O grande motor desse processo de mudança é a necessidade de recursos. Como estão organizadas hoje, as ONGs têm de conviver com a dependência de doações -- uma rotina incerta e arriscada. Até pouco tempo atrás, essa era a fórmula de sobrevivência da Ipê, uma das maiores ONGs ambientais do país, com sede em Nazaré Paulista, no interior de São Paulo. Para se livrar dos altos e baixos, a ONG desenvolveu, há cerca de quatro anos, uma parceria com a Alpargatas para lançar uma linha de Havaianas com desenhos de animais ameaçados de extinção. Nesses quatro anos de duração, a parceria já rendeu cerca de 1,4 milhão de reais. Recentemente, a Ipê decidiu criar a Arvorar, uma empresa (separada da entidade) que presta serviço de consultoria ambiental a grandes companhias. Um dos primeiros trabalhos feitos pela Arvorar foi um projeto de reflorestamento para a Iveco, fabricante de caminhões do grupo Fiat. "Optamos pela separação porque não queremos que interesses comerciais contaminem a atividade-fim da ONG", diz Suzana Padua, co-fundadora e presidente da Ipê.


Com cara de empresa
Cada vez mais ONGs adotam conceitos de negócios:

Aumento das receitas
Para não depender apenas de doações, as ONGs têm gerado receita com a venda de produtos e serviços

Exemplo
A ONG ambiental Ipê mantém, há quatro anos, uma parceria com a Alpargatas para vender sandálias com desenhos de animais ameaçados de extinção, além de outros produtos

Governança avançada
Os conselhos passam a ser compostos não só de especialistas ligados a causas sociais ou ambientais mas também de profissionais da iniciativa privada

Exemplo
André Esteves, presidente do UBS Pactual na América Latina, integra o conselho da ONG carioca CDI

Sucessão no comando
As ONGs são, em geral, centradas no fundador.Agora, começam a estruturar processos de sucessão

Exemplo
A fundador a da Cipó,Anna Penido, de 39 anos, entregou o comando da ONG a três outras profissionais no ano passado


ALÉM DE PENSAR EM NOVAS FORMAS de gerar receitas, as ONGs estão buscando mais eficiência operacional. Na AACD, uma das maiores mudanças ocorreu na área de cirurgias pagas realizadas em seu hospital, em São Paulo. Como es sas operações normalmente são delicadas e caras, era comum que os convênios médicos não autorizassem os procedimentos no prazo necessário. Para agilizar as cirurgias, a AACD contratou, em meados do ano passado, três funcionários, que passaram a se dedicar a esse processo. Ao estabelecer esse canal formal, a entidade aumentou em 8% o número de cirurgias pagas -- o que gerou receita líquida adicional de 1 milhão de reais em 2007.

Assim como grandes empresas brasileiras têm montado suas filiais no exterior em busca de novos mercados, algumas ONGs também começam a expandir suas atividades fora do país. O Comitê para a Democratização da Informática (CDI) é um dos pioneiros nesse movimento. Criada pelo carioca Rodrigo Baggio em 1995 para ensinar informática a crianças e jovens carentes, a ONG possui hoje 753 escolas -- 199 delas espalhadas por sete países da América Latina. O CDI também mantém escritórios de arrecadação de recursos no exterior. O primeiro deles foi inaugurado no início de 2007 em Nova York. "Era estratégico estar no país onde a filantropia está mais desenvolvida e há um incentivo fiscal enorme para as doações", diz Baggio. Seis meses depois, o CDI abriu uma segunda filial americana, em Boston. Em janeiro deste ano, a entidade inaugurou sua primeira operação européia, em Londres. Segundo Baggio, a internacionalização da ONG facilita a criação de uma rede de relacionamentos que pode beneficiá-la no futuro. "Graças ao escritório de Nova York, em novembro participei de um evento organizado pelo ex-presidente Bill Clinton e conheci Carlos Slim, dono da Telmex", afirma Baggio. Ainda não houve resultados concretos do encontro com o empresário mexicano, mas desde então Baggio vem conversando sobre uma eventual parceria com executivos da Telmex, a holding de telecomunicações de Slim.

Para acompanhar suas mudanças administrativas, muitas ONGs têm buscado profissionais na iniciativa privada. O responsável pelo escritório do CDI em Londres desde janeiro é o mexicano Mauricio Davila, ex-executivo da Procter & Gamble. Um dos maiores obstáculos a esse tipo de contratação é a falta de estrutura para atrair e manter funcionários vindos do mundo das empresas. No caso do CDI não há, por exemplo, benefícios simples, como convênios médicos. No início de 2007, o executivo Cláudio Nezlinger deixou a diretoria de recursos humanos da Microsoft e iniciou um trabalho de reestruturação da política de recursos humanos da ONG como voluntário. Para ajudá-lo, compôs uma espécie de conselho formado por outros integrantes, como Deli Matsuo, diretor de RH do Google no Brasil, e a consultora Vicky Bloch. Meses depois, Nezlinger saiu da Microsoft e há cinco meses foi contratado como um dos coordenadores do CDI no estado de São Paulo. "A nossa idéia é negociar com empresas prestadoras de serviços a doação de benefícios e com universidades a concessão de bolsas aos funcionários", diz Nezlinger.

As ONGs também têm sofisticado a estrutura de governança com uma escolha mais cuidadosa de conselheiros externos. "Hoje, muitas começam a se preocupar em compor seus conselhos não só com especialistas renomados nas causas em que militam mas também com pessoas influentes que possam ajudá-las a abrir portas", diz Carina Pimenta, coordenadora do Centro de Competência para Empreendedores Sociais Ashoka-McKinsey. Um dos membros do conselho do CDI, por exemplo, é o carioca André Esteves, presidente do UBS Pactual na América Latina. A Ipê tem entre seus conselheiros o empresário Juscelino Martins, herdeiro do atacadista mineiro Martins. Organizar uma boa governança é o primeiro passo para estruturar a sucessão de comando nas ONGs, normalmente muito dependentes de seus fundadores. A Cipó, ONG baseada em Salvador que treina crianças e adolescentes para o mercado de trabalho, foi uma das primeiras a fazer a passagem do comando de maneira estruturada. Sua fundadora, a baiana Anna Penido, deixou a presidência da entidade em julho de 2007 para coordenar as atividades do Unicef em São Paulo, Minas Gerais e na Região Sul do país. Antes disso, ajudou a escolher três profissionais da própria organização que a substituíram no comando. Ana ocupa a presidência do conselho e não tem planos de voltar para a operação. "Assim como numa empresa, para se perpetuar, a ONG precisa se tornar independente de quem a criou", diz ela.


Fonte: Por Ana Luiza Herzog, in portalexame.abril.com.br

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