O fenômeno não é novo; é um clássico da natureza humana e tem feito parte oficial da história do País desde que o Jânio estabeleceu como motivo de sua renúncia a influência de “forças ocultas” sobre o Palácio do Planalto. O fenômeno tem vários nomes, e decidi batizá-lo aqui de “terceirização da culpa”. Já ouvi melhores, como Lei de Neco (fragmento de “Necomigo”). Independentemente do nome, trato aqui do expediente sistemático de culpar os outros por nossos fracassos. É conveniente, confortável e, para dormir de noite, funciona melhor do que chá de camomila com Dormonid.
Vamos focar aqui na nossa querida atividade publicitária. A criatividade está em baixa? A culpa é do cliente. Nossa produção eletrônica já foi melhor? A culpa é do cliente. Só ganhamos prêmios com fantasmas? A culpa é do cliente. O cliente não aprova, o cliente é cagão, o cliente é pão-duro — o cliente, o cliente, o cliente. Um marciano que pousasse aqui, digamos, no meio de um almoço de sexta-feira no Astor, descreveria nossa atividade como um confronto entre gênios incompreendidos e tiranos insensíveis. Mas o que aconteceria se o tal marciano decidisse passar a semana toda entre nós?
Será que ele veria reuniões instigantes entre clientes e agência, com ambos questionando dogmas e certezas? Ou ele presenciaria o que um velho professor meu chamava de Pacto Calhorda (“eu finjo que ensino enquanto vocês fingem que aprendem”). Ele testemunharia agências propondo corrigir o rumo de suas próprias estratégias e reconhecendo que não têm o controle sobre tudo o tempo todo? Ou assistiria a apresentações empacotando auto-elogios aos presentes na sala, para que todo mundo fique o tempo todo com a sensação de estar sempre fazendo a coisa certa? Um bom exemplo para mim é a famosa análise da concorrência. É aquela reunião, ou pedaço de reunião, na qual a agência avalia a comunicação dos principais concorrentes do cliente. Sempre adorei aquela parte quando passam os filmes do concorrente, principalmente quando a criação está presente. Os filmes são sempre uma merda. Apontam-se defeitos e condena-se a comunicação do concorrente com uma certeza só encontrada hoje em dia nos veredictos de Guantánamo. Claro — afinal, é uma técnica que reafirma a genialidade e o acerto de todos os presentes na sala, do cliente inclusive. O mais curioso é que, no concorrente, a reunião é igual. A preocupação com o bem-estar do cliente pessoa física se tornou tão obsessiva que se esqueceu de que o cliente pessoa jurídica, assim como nós, precisa de crítica, precisa ser provocado, precisa ser alertado quando está fazendo algo errado, ou mesmo deixando de fazer algo certo (o que, em publicidade, dá quase na mesma).
Ah, o cliente está passando por um processo de juniorização? Está. É fato. Os cortes de custos dos últimos 15 anos reduziram departamentos e cortaram, sim, cabeças pensantes da equipe do lado de lá da mesa. E nós reagimos como a isso? Elegendo a tal juniorização como o demônio invencível que veio para reprovar nossas brilhantes campanhas. Esquecemos que, se por um lado dá trabalho e custa caro repor parte desse gap no time do cliente, por outro, temos a oportunidade de formar um novo mercado, uma nova mentalidade. Quanto tempo você dedica a dividir suas referências, visões, idéias com o time do cliente, em especial a base do time dele? Base essa que, por motivos óbvios, está ávida por crescer; afinal, ninguém quer ser júnior para sempre. Acredite: os líderes das equipes de marketing dos anunciantes também não estão felizes com a juniorização dos seus times. Eles contam, sim, com você e com sua agência para ajudá-los a dar mais bagagem, mais consistência, mais visão estratégica para o time deles, no menor tempo possível. Custa caro? Custa. Quem sabe vocês não tocam nesse assunto na próxima negociação de fee?
Quando as idéias de ponta, realmente transformadoras, perturbadoras até, são apresentadas? No dia-a-dia da conta ou na apresentação de concorrência? Em uma reunião corriqueira de segunda-feira ou na semana anterior ao fechamento de inscrições do Festival de Cannes? No cotidiano, ou quando o cliente ameaça tirar a conta? Vamos cair na real: ultimamente, no Brasil, jogamos com o time titular apenas nos jogos de exibição; no campeonato oficial entra o reserva, mesmo. E empate é considerado excelente resultado.
A palavra-chave é consistência. E consistência conquista- se com um dia-a-dia muito trabalhoso, muito duro, muito cruel. Um dia-a-dia pouco glamouroso, de poucos aplausos, de questionamento, de autocrítica permanente. De muitas vezes ser considerado um pentelho pelo cliente e muitas vezes até pelo dono da agência. Um dia-a-dia no qual somos responsáveis pelos nossos próprios fracassos, mas também pelas voltas por cima, pelas reações incríveis, pelas viradas de jogo. Respire fundo e pratique. A propaganda brasileira agradece.
Fonte: Fernando Campos - sócio diretor de criação da Santa Clara, in www.meioemensagem.com.br
Vamos focar aqui na nossa querida atividade publicitária. A criatividade está em baixa? A culpa é do cliente. Nossa produção eletrônica já foi melhor? A culpa é do cliente. Só ganhamos prêmios com fantasmas? A culpa é do cliente. O cliente não aprova, o cliente é cagão, o cliente é pão-duro — o cliente, o cliente, o cliente. Um marciano que pousasse aqui, digamos, no meio de um almoço de sexta-feira no Astor, descreveria nossa atividade como um confronto entre gênios incompreendidos e tiranos insensíveis. Mas o que aconteceria se o tal marciano decidisse passar a semana toda entre nós?
Será que ele veria reuniões instigantes entre clientes e agência, com ambos questionando dogmas e certezas? Ou ele presenciaria o que um velho professor meu chamava de Pacto Calhorda (“eu finjo que ensino enquanto vocês fingem que aprendem”). Ele testemunharia agências propondo corrigir o rumo de suas próprias estratégias e reconhecendo que não têm o controle sobre tudo o tempo todo? Ou assistiria a apresentações empacotando auto-elogios aos presentes na sala, para que todo mundo fique o tempo todo com a sensação de estar sempre fazendo a coisa certa? Um bom exemplo para mim é a famosa análise da concorrência. É aquela reunião, ou pedaço de reunião, na qual a agência avalia a comunicação dos principais concorrentes do cliente. Sempre adorei aquela parte quando passam os filmes do concorrente, principalmente quando a criação está presente. Os filmes são sempre uma merda. Apontam-se defeitos e condena-se a comunicação do concorrente com uma certeza só encontrada hoje em dia nos veredictos de Guantánamo. Claro — afinal, é uma técnica que reafirma a genialidade e o acerto de todos os presentes na sala, do cliente inclusive. O mais curioso é que, no concorrente, a reunião é igual. A preocupação com o bem-estar do cliente pessoa física se tornou tão obsessiva que se esqueceu de que o cliente pessoa jurídica, assim como nós, precisa de crítica, precisa ser provocado, precisa ser alertado quando está fazendo algo errado, ou mesmo deixando de fazer algo certo (o que, em publicidade, dá quase na mesma).
Ah, o cliente está passando por um processo de juniorização? Está. É fato. Os cortes de custos dos últimos 15 anos reduziram departamentos e cortaram, sim, cabeças pensantes da equipe do lado de lá da mesa. E nós reagimos como a isso? Elegendo a tal juniorização como o demônio invencível que veio para reprovar nossas brilhantes campanhas. Esquecemos que, se por um lado dá trabalho e custa caro repor parte desse gap no time do cliente, por outro, temos a oportunidade de formar um novo mercado, uma nova mentalidade. Quanto tempo você dedica a dividir suas referências, visões, idéias com o time do cliente, em especial a base do time dele? Base essa que, por motivos óbvios, está ávida por crescer; afinal, ninguém quer ser júnior para sempre. Acredite: os líderes das equipes de marketing dos anunciantes também não estão felizes com a juniorização dos seus times. Eles contam, sim, com você e com sua agência para ajudá-los a dar mais bagagem, mais consistência, mais visão estratégica para o time deles, no menor tempo possível. Custa caro? Custa. Quem sabe vocês não tocam nesse assunto na próxima negociação de fee?
Quando as idéias de ponta, realmente transformadoras, perturbadoras até, são apresentadas? No dia-a-dia da conta ou na apresentação de concorrência? Em uma reunião corriqueira de segunda-feira ou na semana anterior ao fechamento de inscrições do Festival de Cannes? No cotidiano, ou quando o cliente ameaça tirar a conta? Vamos cair na real: ultimamente, no Brasil, jogamos com o time titular apenas nos jogos de exibição; no campeonato oficial entra o reserva, mesmo. E empate é considerado excelente resultado.
A palavra-chave é consistência. E consistência conquista- se com um dia-a-dia muito trabalhoso, muito duro, muito cruel. Um dia-a-dia pouco glamouroso, de poucos aplausos, de questionamento, de autocrítica permanente. De muitas vezes ser considerado um pentelho pelo cliente e muitas vezes até pelo dono da agência. Um dia-a-dia no qual somos responsáveis pelos nossos próprios fracassos, mas também pelas voltas por cima, pelas reações incríveis, pelas viradas de jogo. Respire fundo e pratique. A propaganda brasileira agradece.
Fonte: Fernando Campos - sócio diretor de criação da Santa Clara, in www.meioemensagem.com.br
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