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A bilionária polêmica em torno do Sistema S

Um assunto gerou discussões acaloradas nas últimas semanas entre entidades empresariais, de um lado, e governo e especialistas em educação, de outro. O pivô da contenda é a reforma do chamado Sistema S, conjunto de nove instituições voltadas para o ensino profissionalizante e para a promoção de cultura e lazer a trabalhadores dos mais diversos setores. Entre as mais conhecidas estão o Senai e o Sesi, ligadas à indústria — e as primeiras criadas pela lei que instituiu o Sistema, em 1942. O complexo todo inclui hoje 1 200 escolas, somente nas áreas da indústria e do comércio, e movimenta um orçamento anual de 11 bilhões de reais, de acordo com o Tribunal de Contas da União. É exatamente o que fazer com esse dinheiro — fruto de uma contribuição obrigatória de 2,5% sobre a folha de pagamentos das empresas — que está no centro do debate. O pano de fundo da discussão é composto de crescimento econômico acelerado, acompanhado por uma crônica falta de mão-de-obra qualificada em quase todos os setores e níveis — uma debilidade que, por sinal, tem origem no péssimo nível do Ensino Fundamental público brasileiro. “O Sistema pode formar mais técnicos”, diz o ministro da Educação, Fernando Haddad, defensor de um projeto que redireciona os recursos arrecadados pelo Sistema S. Para dirigentes de entidades empresariais que participam da administração do Sistema, a proposta do governo tem como objetivo final transferir a “chave” desse imenso cofre para as mãos do Estado. “Esse projeto é estatizante, burocratizante e intervencionista”, afirma Armando Monteiro Neto, presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), um dos mais inflamados opositores às mudanças. Mais do que apontar qual dos dois lados está com a razão, o debate tem o mérito de jogar luzes sobre a falta de educação e qualificação do trabalhador brasileiro e o perigo que isso representa para a sustentação do crescimento da economia e das empresas. Tem o mérito também de colocar em discussão a eficiência de um sistema que foi concebido há quase sete décadas, num Brasil e num mundo que mudaram radicalmente desde então.

Com a palavra, os financiadores e supostos beneficiários do Sistema S, as empresas brasileiras. EXAME realizou uma pesquisa exclusiva com 278 empresas, entre grandes, médias e pequenas, e a principal conclusão foi que elas — sem distinção de porte — não estão satisfeitas. Sete de cada dez companhias consultadas se manifestaram contrárias ao pilar do Sistema S: a obrigatoriedade da contribuição. E 80% delas declararam que prefeririam usar o dinheiro para treinar por conta própria os funcionários. Outro aspecto sensível é a gestão: apenas 19% das empresas que responderam à pesquisa consideram a administração transparente e 52 % se disseram sem condições de avaliá-la.

Além de um orçamento bilionário, está em jogo a principal rede de ensino profissionalizante do país, num momento em que a carência de mão-de-obra qualificada se apresenta como um dos gargalos que podem travar o crescimento da economia. O Brasil forma por ano 200 000 técnicos de nível médio em várias especialidades. Mas um recente estudo da CNI alerta para a necessidade de o país formar, além desses, mais 400 000 técnicos até 2010. “É uma boa hora para discutir se estamos usando essa montanha de dinheiro da melhor maneira possível”, afirma o economista Cláudio Haddad, presidente da escola de negócios Ibmec São Paulo. “O setor privado deveria dar o exemplo e se mostrar mais transparente com as contas do Sistema.”


Retorno questionado
Uma pesquisa exclusiva realizada por EXAME com 278 empresas, entre grandes, médias e pequenas, revela insatisfação com o Sistema S

Obrigatoriedade da contribuição(1)
71% são contrários à obrigatoriedade
80% prefeririam usar o dinheiro para treinar os funcionários por conta própria

Como o dinheiro é empregado
53% responderam que os recursos não são bem empregados

Utilização dos serviços
75% das empresas ouvidas já contrataram cursos de formação profissional ou consultoria do Sistema

Os preços dos serviços são justos?
Consideram os preços justos 54%
Consideram os serviços caros 42%
Consideram baixos 4%

Os cursos são adequados?
A oferta é parcialmente adequada 54%
Os cursos são adequados 30,5%
São inadequados 15,5%

Contratação de formados nos cursos
Raramente contratam 48%
Contratam com freqüência 30%
Nunca contratam 22%

Quais devem ser as prioridades
Promover tanto formação profissional quanto lazer e cultura 60,5%
A prioridade deve ser a formação profissional 38%
A dedicação deveria ser somente ao lazer 1,5%

Como avaliam a administração das entidades
Não sabem avaliar 52%
A gestão não é transparente 29%
A gestão é transparente 19 %

(1) As empresas recolhem, por lei, 2,5% sobre a folha de pagamentos para manter o Sistema S


A pesquisa realizada por EXAME identificou também que 54% das empresas consideram que o cardápio de cursos oferecidos pelas escolas do tipo S é apenas parcialmente adequado às necessidades. Outros 15,5% disseram não encontrar nenhuma modalidade de formação que lhes seja útil nas escolas profissionalizantes. Exemplo disso é a catarinense Datasul, especializada em softwares de gestão empresarial, que contribui anualmente com 800 000 reais para o Senac e o Sesc, as entidades ligadas ao comércio e a serviços. “Infelizmente, esse é um dinheiro que não nos dá retorno, pois a entidade não oferece nenhum curso que atenda ao que precisamos em termos de formação de profissionais”, afirma Giovanni Coradin, diretor de recursos humanos da Datasul. Ao que tudo indica, o Sistema S não enxergou a carência de mão-de-obra que o país enfrenta no setor de tecnologia da informação. Estima-se que o Brasil tenha déficit de 50 000 programadores e analistas de sistemas. “Esses profissionais estão na base da sociedade do conhecimento e devem ser vistos como prioridade, assim como era formar técnicos em mecânica nas décadas de 60 e 70”, diz Coradin. Anualmente, a Datasul — além de recolher sua contribuição compulsória — gasta 2,4 milhões de reais em treinamento de pessoal em sua universidade corporativa. Nas médias empresas, nem sempre o quadro é diferente. A Agropecuária Jacarezinho, criadora de gado de corte do interior de São Paulo, recolhe cerca de 60 000 reais anuais para o Sistema S. Nenhum funcionário contratado foi formado nas escolas do Senar, o braço profissionalizante do Sistema para o setor agrícola. “Os cursos oferecidos são muito limitados”, diz Ian David Hill, presidente da Agropecuária Jacarezinho. “Precisamos gastar outros 55 000 reais todos os anos se quisermos treinar nosso pessoal.”

É verdade que essa não é a mesma realidade para todos os setores produtivos. Ao longo de quase 70 anos de existência, várias entidades do Sistema S construíram uma imagem atrelada à qualidade. Não é exagero afirmar que o Senai — braço de ensino profissionalizante do Sistema atrelado à indústria — foi um dos esteios da forte industrialização do país após a década de 60. Até hoje, a rede de ensino é considerada fornecedora fundamental de pessoal especializado na indústria automobilística. “Trata-se de uma das poucas fontes de formação de mão-de-obra técnica para nosso setor”, afirma um executivo de uma montadora que preferiu não se identificar. É por esse motivo que boa parte do empresariado se arrepia quando ouve falar sobre reforma no Sistema S. “Há um medo generalizado de que os recursos que sustentam as escolas passem para as mãos do governo, por isso a maioria se contenta com a máxima ‘ruim com ele, pior sem ele’ ”, diz o executivo.


O que pode mudar no Sistema S
Entre as alterações propostas pelo governo na rede de escolas e de serviço social, a principal é a maior ênfase no ensino profissionalizante

O que muda

Prioridade para o ensino
As escolas ficariam com 60% da arrecadação e a área de serviço social com 40%. Hoje a proporção é inversa

A destinação do dinheiro
Os recursos compulsórios destinados a escolas profissionalizantes custeariam apenas cursos gratuitos. Atualmente, o dinheiro vai também para cursos pagos

A divisão do bolo
Do total arrecadado, 80% seriam distribuídos a cada estado proporcionalmente ao número de vagas gratuitas oferecidas. O restante seria repassado para os demais estados de acordo com a população economicamente ativa. A divisão hoje é feita apenas conforme o percentual arrecadado por estado

Duração dos cursos
Só serão considerados cursos técnicos aqueles com, no mínimo, 200 horas de duração. As escolas como o Senai e o Senac, por exemplo, podem continuar oferecendo cursos curtos, desde que pagos pelas empresas ou pelos alunos

Exigências para os alunos
Para ingressar nos cursos gratuitos, seria necessário estar matriculado em cursos de Ensino Fundamental ou Médio (supletivos, telecursos, cursos regulares em escolas públicas ou privadas). Hoje não há exigência


O que não muda

Quem cuida do dinheiro
O Ministério da Previdência, que arrecada o dinheiro, continuaria repassando os valores para o Sistema S em cada estado

A gestão das entidades
Os conselhos que reúnem representantes da iniciativa privada, de membros do governo e dos sindicatos dos trabalhadores continuariam os mesmos

Quem define os cursos
As entidades do Sistema S — como o Senai, por exemplo — continuariam decidindo o tipo e onde cada curso profissionalizante deve ser oferecido

O principal temor das federações empresariais é que o governo esteja, na verdade, querendo assumir a gestão dos recursos que mantêm o Sistema. O governo refuta a acusação. O ministro da Educação, Fernando Haddad, foi categórico em entrevista a EXAME: “Não propusemos e não temos a pretensão de controlar um único centavo do Sistema”. Além de nada mudar na gestão do dinheiro, a decisão sobre o tipo de curso que deve ser dado e onde deve ser ministrado também continuará nas mãos das entidades, que, segundo ele, sabem melhor do que o governo as demandas das empresas. “Não será criada nenhuma nova conta corrente, nenhum novo conselho”, afirma Haddad.

Uma mudança fundamental proposta pelo governo é a revisão dos percentuais de distribuição da arrecadação entre o setor de ensino e o de serviço social do Sistema S. Atualmente, 40% dos recursos são destinados às entidades de ensino profissionalizante, enquanto 60% vão para os centros de cultura e lazer, entre eles o Sesc, reconhecido como importante circuito de espetáculos culturais e por instalações esportivas e de lazer de primeira linha. O governo propõe que se inverta a proporção: os recursos passariam a financiar majoritariamente a educação. Dias atrás, o Ministério da Educação aceitou estudar a contraproposta das entidades de serviço social, que pleiteiam manter a divisão atual de recursos ou, no máximo, dividi-los pela metade.

Outro ponto da reforma é estabelecer como princípio que os recursos arrecadados compulsoriamente sirvam para custear apenas cursos gratuitos. Hoje, as escolas do Sistema oferecem cursos gratuitos e pagos sem distinção do recurso que os custeia. Os cursos gratuitos passariam a ser todos de nível técnico e a ter pelo menos 200 horas de duração. Segundo Haddad, os cursos de rápida duração, geralmente feitos sob medida para uma empresa — para operar uma máquina, por exemplo —, são necessários e de grande valia para o setor produtivo, mas servem apenas para uma capacitação imediata do trabalhador, não para formá-lo numa profissão. “As escolas do Sistema S podem e devem continuar oferecendo cursos de curta duração, porém eles terão de ser pagos pelas empresas ou pelos próprios alunos”, diz Haddad. Pelas contas do ministério, com essas mudanças é possível formar anualmente 800 000 técnicos em cursos de 800 horas ou 3,2 milhões em cursos de 200 horas com os recursos que seguem apenas para as redes profissionalizantes do Sistema. Atualmente, a média de duração dos cursos do Senai é de 84 horas. No ano passado, a rede, cujo orçamento foi de 1,4 bilhão de reais, formou 100 000 técnicos e aprendizes gratuitamente.

Não há como negar que, ao longo de quase sete décadas, as entidades do Sistema S sofreram um desvirtuamento. Metade dos cursos do Senai atualmente é paga pela empresa ou pelo estudante — isto é, paga-se além da contribuição compulsória. Numa pesquisa nos sites do Senac, não é possível encontrar nenhum curso gratuito. A justificativa, segundo a direção nacional da entidade, é que a cobrança ajuda a subsidiar a formação de um número maior de profissionais. Para Fernando Leme, presidente da Associação Nacional de Educação Tecnológica, que representa as escolas técnicas privadas, a explicação é outra. “Eles vivem no melhor dos mundos, pois recebem dinheiro faça chuva ou faça sol e, portanto, não têm de se esforçar em operar da maneira mais competitiva possível”, afirma Leme. “Certamente é possível fazer mais com o mesmo.”


Fonte: Por Roberta Paduan, in portalexame.abril.uol.com.br

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